quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Ariovaldo e o Blues


Diante de uma TV de quatorze polegadas e um monitor de câmeras, sonhava Ariovaldo. Um jornal de ontem, um rádio de pilhas, sapatos engraxados, gravata e camisa azul. Entre a porta do elevador e a porta da rua, sonhava Ariovaldo. Sonhava o dia em que deixaria a portaria, sem olhar pra trás, sem abrir portão, sem encerar o chão. Poderia viver de sua grande paixão: “sanfonar”. Pois nas sextas, o simpático e solícito porteiro, transformava-se num exímio sanfoneiro. Nas sextas à noite, Ariovaldo era a sensação de um forro no subúrbio da cidade. Sua musica quente transformava o ambiente numa versão compacta de Sodoma e Gomorra, tamanha esfregação na pista. Nas sextas de Ariovaldo, os motéis baratos enchiam e os vidros dos carros embaçavam. Foi acusado de ser o responsável pelo aumento de crianças no bairro em que morava, o efeito “baby boom Ariovaldo”. Eram tantos os pequenos que faltava nome. Discussões surgiam e ganhava quem registrava primeiro o rebento. Variações de “Wesley”, “Wesleyson”, “Wesleiano”, “Wescley” e tantos outros, pipocaram.


Rosa, sua esposa, mal podia assistir as apresentações do marido,  alternava seu tempo entre faxinas diárias e um supletivo de noite. Nas sextas, ela preparava suco de jabuticabas, vestia sua melhor camisola e esperava pelo marido até altas horas. Este, cansado, ao chegar em  casa, tomava banho, o suco e Rosa, tudo numa golada só. Conversavam um pouquinho e dormiam entre cafunés e entrelaçar de pés. O bispo se despedia na TV. Eram felizes.


A fama do marido se espalhava e os bailes enchiam de gente. Até o suco sobrar na jarra e a janta esfriar, a camisola voltou a dormir no armário. Rosa, já não esperava mais pelo sanfoneiro, que chegava cada vez mais tarde em casa. “Ontem foi um sufoco, o pessoal não me deixava sair!” – justificava.

Na falta das justificativas, passou a evitar os olhos da mulher nos sábados pela manhã. O que se ouvia pelo bairro, era o boato de que o sanfoneiro tinha um caso com Lúcia, outros diziam ser Lídia. “Vi ele com Lili, ou seria Lívia?”- afirmava Lurdes, mulher do dono do forró. O boato corria de boca em boca, entrava e saia de vielas, velocidade incrível. O boato corria, ultrapassava sinais. Subiu escadas, desceu, tocou campainha, saiu de uma boca má e entrou direto pelos ouvidos de Rosa, devastou-a. 


Numa dessas sextas- que na verdade já era sábado, flertando com o domingo- Ariovaldo chegou em casa as cinco da manhã. O hábito lhe havia fornecido habilidade de um gato, de um ladrão, desses de Hollywood. Forçou e empurrou a maçaneta até ouvir o “click”, entrou em passos leves. A luz do poste transformava a figura de sua cabeça, projetada na parede da sala, numa figura hedionda. Foi em passos leves até o banheiro, onde batom barato e perfume desceram pelo ralo. A canastrice, nenhum desinfetante ou alvejante amenizaria. Olhou os próprios dentes no espelho, constatou o inicio de uma calvície ao pentear os cabelos pra trás. 


Ao entrar no quarto, a cama arrumada lhe causou um choque. Olhou por exatos três minutos, a cena. Que dia era aquele? Que horas seriam? Onde estaria Rosa? Culpou o relógio, a falta de lógica do mundo naquele minuto. Ajoelhou-se e apoiou as mãos na ultima gaveta da cômoda. Procurando por alguma razão, se sentiu tentado a olhar dentro das gavetas ou embaixo da cama, a procura da mulher.

Tremeu os lábios e chamou seu nome baixo: “-Rosa?”. Ninguém respondeu, só ouvia a própria respiração. Abriu o armário e se deu conta de que muitas coisas, além de Rosa, não estavam ali. Tateou em busca da camisola, tampouco ela. Sentiu-se então, naquela hora, o mais miserável de todos os homens. Deitou-se na cama, fechou-se como um caracol, usava sapatos...


(continua)

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Gato


           


Sentado na porta do quarto, com um olhar de desdém, analisava os convites da dona:
-Vem, deita aqui, ta um frio! Você não quer deitar aqui? Vem... Vem cá.
Permanecia imóvel, olhando lugar nenhum. Os convites ainda ecoavam pelo quarto pouco iluminado. Um abajur sobre a mesinha deixava tudo muito agradável, algumas almofadas caídas pelo chão, cobertor e edredom tornavam aquele, o quarto mais atrativo de toda vizinhança. Mas ele não cedeu às tentações, virou-se lentamente e saiu balançando o rabo, num andar descompromissado. Passou pela sala, adentrou a cozinha e cogitou um pouco de ração, talvez água... Não. Pulou basculante e equilibrou-se na cerca de ferro, invadiu o telhado do vizinho e foi até a rua. O caminhão vinha longe ainda, dava pra atravessar, a preguiça e precaução o fizeram esperar. O muro a sua frente era bem alto, gatos mais jovens e em melhor forma galgariam o topo sem maiores dificuldades; ele abaixou a cabeça e levantou o traseiro, rebolou graciosamente, mordeu o canto da boca e saltou, ainda era bom naquilo. A lua veio e foi embora, a luz do poste acendeu e apagou, atrás do muro se ouviam miados altos e amenos, folhas balançando e alguns outros barulhos não identificáveis por ouvidos humanos. Atrás do muro,“Sodoma e Gomorra” dos gatos.
Era inicio do dia quando ele apareceu em cima do muro novamente, tinha umas folhas agarradas na cabeça e o pelo molhado pelo sereno. Parecia irremediavelmente feliz. Fez o caminho de volta sem pressa nenhuma. Adentrou a casa pelo mesmo basculante por onde saíra, fez um barulhão. Passou pela cozinha e dessa vez não ignorou a ração e a água, arrematou ambos. Fez passos cambaleantes e tortos até o quarto, viu que o abajur ainda estava acesso, mas a luz calma que transpassava a fina cortina deixava o quarto mais iluminado que antes. Forçou a cabeça na porta e entrou. Tropeçou num sapato meio largo, de formato rude e grave, não combinava com as cores do quarto. Passou por cima de uma calça e prendeu a pata de trás num cinto não totalmente afivelado; só então, percebeu que a rotina do quarto tinha sido quebrada. Analisou todo o cenário com um olhar investigador e no final da tomada panorâmica os olhinhos verdes eram assustados e mal humorados. Tratou logo de pular na cama e viu dois volumes embrulhados no cobertor, escalou o maior. Foi pisando forte sobre o corpo ainda não apresentado formalmente, “ta no meu lado da cama”-pensou. Quando a cabeça de outro bicho, de barba e cara cretina apareceu sonolenta, o gato brigou feio: “Que porra é essa aqui?”-exclamou.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Já não me amo mais




-Pai, que é esse roxo na cara?
-Nada menino, escorreguei no banheiro.
-E que foi aquele barulho de madrugada?
-Nada sério, tua mãe chegou meio agitada. Óh, não vá comentar nada!

Batedeiras e liquidificadores
Gritam dentro de casa
Eu, sufoco a mágoa
Frente do espelho

Você passa como um trem
Alimentada pelo carvão da modernidade
Sempre tão apressada
Já não conversamos mais...

São tantas pastas, papéis
Tabelas e contratos
Celulares e prazos
Já não me nota mais...

Não sei se foi algo que leu
Ou viu na televisão
Ou se foi aquela nova moça, na tua repartição
Como ela se chama? Vanessão!

Fiz teu doce preferido
Mudei o cabelo
Lustrei o chão
Pizza de manjericão

Eu, sempre tentando algo diferente
Você sempre por cima, não consigo
A última vez que ficou de quatro pra mim
Pegavas o chinelo pra me bater
Já não me ama
Já não me amo mais.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

"...mas não quebra opinião."

        
       Aglomeração na praça. No meio do circulo estava ele, gesticulando, bradando e anunciando. Tinha estatura média, vestia camiseta e calça de moletom. Era forte, a camiseta sem mangas mostrava um braço torneado. Não era um braço construído em academias, parecia ter sido moldado entre enxadadas e baldes de massa. Eu, garoto, conseguia ver tudo de um lugar privilegiado: estava na parte de dentro do grande circulo de curiosos. Havia um bambolê suspenso por uma base fixa e várias facas de cozinha transpassando o brinquedo.  Ele anunciou que iria saltar por ali.
        -É isso mesmo minha senhora, darei um salto mortal por dentro do círculo de facas da morte! - Revelou. De fato, alguns rasgos em sua camiseta denunciavam que nem sempre ele obteve sucesso. Antes do salto, fez um comovente discurso sobre arte de rua, disse que não pedia dinheiro, mas quem quisesse ajudar, poderia comprar uma de suas pomadas.
        -Cura tosse, dor nas costas, infecção, bico de papagaio, bronquite, artrose, rinite alérgica, tira verruga e ainda bronzeia! – Pensei em pedir a minha mãe pra comprar uma dessas, eu sofria de quase tudo o que ele havia descrito.
         Antes do grande salto, silencio. Todos observavam. Um clima tenso tomou a praça. O artista encarava o brinquedo, parecia concentrado. Rompeu o silêncio mais uma vez, anunciou as pomadas e manteve o discurso:
         -Pularei como um gato, uma fera, um animal! Tenho sangue de leopardo na veias. Venho de uma família de ninjas. Pularei pelas facas igual, igual –Me olhou- Igual o Jiraya!!
          Apontou pra mim e perguntou:
          -Gosta do Jiraya garoto?
          Toda a praça me olhava. Eu, depois do artista, do bambolê e da pomada, era o centro de todas as atenções. O silencio era cortado por uma buzina ao longe e por um choro de bebê, perto. Hesitei em responder, eu não gostava do Jiraya, na verdade, eu odiava o Jiraya.
          -Responde garoto, gosta do Jiraya?-Gritou. Eu tremi! Umas gargalhadas rolaram ao fundo.
          -Eu...eu...eu prefiro o Jaspion.
          Toda a praça riu, era tanto riso que creio que até os pombos riam. O artista de rua riu um riso sincero e pulou.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Bicho de quatro cabeças


     
      Ela tinha o dobro da minha idade, o que lhe conferia uns 22 anos (na época). Cabelos escuros e longos, morena de pele clara e belos olhos. Michele Pfeiffer, num poster, servia como pano de fundo. Coadjuvante, diante da beleza dela. Éramos tão intimos que ela sabia a minha senha de cabeça. Sempre me sorria do outro lado do balcão. Eu retribuia com um sorriso tímido e tentava manter o olhar fixo nela, mas logo desviava. Era amor...
      Com o tempo, fui abandonado o gênero infantil ou pré-adolescente. Me doía passar direto pelo Superman de Donner na prateleira. Troquei Roger Moore por Timothy Dalton na franquia 007. Moore era muito paspalhão, enquanto Dalton explodia tudo sem fazer sequer uma piada. Eu queria paracer mais maduro.
     Abandonei também o catálogo (platina dupla) e me concentrei nos lançamentos (ouro), o que me garantia voltar no dia seguinte. De novo, o mesmo sorriso atrás do balcão. Eu já tinha assistido mais filmes do que qualquer garoto da minha idade.
     Certo dia, ao devolver-lhe a fita, tomei coragem e sustentei meu olhar fixo nos dela. Ela me sorriu, como sempre. Sustentei ainda o olhar e deixei escapar um sorriso torto. Então, o olhar dela tomou ares sérios. O sorriso dela se desfez e me encarou com um tom decepcionado. Disse, numa voz fria:
     -Garoto, você esqueceu de rebobinar a fita!- E virou-se.
Eu esqueci, esqueci de rebobinar a maldita fita! Eu tinha pressa, queria logo que o aparelho cuspisse qualquer idiota como De Niro ou Pacino. Eu tinha pressa.
      -Vai, cospe logo! - dizia pra ele- Eu quero encontrar com ela. Tenho pressa!