quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A falta de açúcar

Eu quero perder a visão
Quero ter amputado pernas,braços e cinismo
Quero café doce!
Açúcar derramado!
Prefiro um abraço refinado e branquinho
Sorriso de cristais
Colo mascavo!
Porque os passos são bonitos em sintonia
E dedos entrelaçados alegram as praças e os pombos
Sorrisos são os motivos de toda padaria
A vida é doce!
E eu, ando cansado de pessoas-aspartame.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Você

Acordei e calcei você
Te olhei no espelho
Te engoli, escovei você
Te cuspi
Te abotoei até o último botão
Adocei você
Eu te mastiguei no café da manhã,
No almoço e na janta
Andei você
Te li nas manchetes dos jornais
Tropecei em ti
Te vi em cada esquina, em cada sinal, cada janela
Você sorriu pra mim
Me ignorou
Me cumprimentou
E eu te abri, te li, somei, subtrai...
Ri de você
Me zanguei com você
E senti saudades sua
Será, que a única coisa que eu faço é pensar em você?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Francie Brady

Tem olhos tristes
Tem um olhar perdido
Apara a cabeça tristonha sobre mãos cansadas
Numa janela de vidros sujos observa o lago
Veste uma camisa azul desbotada
Uma bermuda de pano rasgada
Meias e sapatos velhos
Tem um peixinho dourado numa sacola
Tem uma vitrola
Tem muita saudade
Tem fome também
Tem olhos tristes
Tem um olhar perdido
Apara a cabeça tristonha sobre mãos cansadas

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O dia em que a terra parou

O gari sutilmente debruçou o queixo sobre sua vassoura e cruzou as pernas ainda em pé
O motorista passou direto do ponto sob vaias e protestos...Que logo cessaram
Sapatos bateram de frente nas calçadas
Mãos erraram seus destinos em cumprimentos falhos
E todo pescoço curvou-se de maneira lenta
Todas as cabeças, barbadas ou magras, bem feitas, loucas! Admiraram aquele momento
No que parecia um gesto coreografado todos admiraram
Pois naquele dia, naquele dia, ela saiu de casa num vestido vermelho.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Progresso

A fábrica virou igreja
A mercearia virou igreja
A farmácia ainda é farmácia
Mas o cinema também virou igreja..
Ai Deus! Queria eu, que uma vez só...
A igreja virasse boteco.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Andar

Quando eu ando por ai, meus sapatos velhos e cansados
devoram pedaços inteiros de asfalto
O estômago ronca um vazio que vem da alma
E a cabeça rumina antigas saudades.
Queria eu que junto com as solas desses sapatos
Ficasse pela rua, como um rastro, essa velha solidão
Andar, andar sem olhar pra trás
Sentir as penas dormentes e não a cabeça pender pro lado, ou pra baixo
mirando esses sapatos gastos
Pois a cabeça pesa como bigorna de desenho preto e branco
Acorda pesada, quando por milagre...dorme.
"Não para agora não" eu digo
"Só mais um quarteirão"
Tento despistar por ruas emaranhadas essa culpa
Mas ela, esperta, sempre me encontra num beco sem saida
Esperta como um cão!
E pra que andar?
Não existem mais cataventos por ai
Toda essa procura é em vão.
Esse andar é uma necessidade
É também enganação.

Sonho

Era tudo antigo naquela padaria. O letreiro com o nome do estabelecimento era patrocinado por um refrigerante extinto a décadas. A balança ainda era daquelas em que se puxava um pesinho prum lado, pro outro, só um toque, Pronto!
duzentos gramas de mortadela de frango. Antigo também era o seu dono, sempre mal-humorado, cigarro na boca e caderno de esportes na mão.
Quando o guri venceu o medo do sujeito mal encarado no caixa, que ficava logo na entrada da padaria, correu para os fundos, onde um balcão de frios e doces se escondia. Atrás do balcão uma menininha também, forçada pela vida a ser mulher antes de brincar de casinha. Ela limpava um cortador de frios, cego e empoeirado. Na ponta dos pés o garoto perguntou então a atendente:
-Oi,você tem sonho?
Então, lentamente a menina parou o trabalho, olhou com um olhar pesado e triste os olhinhos e as mãos que se apoiavam com dificuldade no balcão e respondeu:
-Eu acordo as cinco, me arrumo, esquento o café, acordo a menina, visto ela, saio com pressa pra não perder o ônibus, deixo a menina na creche, venho andando até aqui. Trabalho até as duas, saio,engulo qualquer coisa, dou um jeito na casa e pego umas costuras pra fazer, ainda busco a menina na creche, então tenho que fazer comida, arrumar a marmita pro marido...mal vejo a novela e durmo! Não menininho, eu não tenho mais sonhos não.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Na fazenda

Achei que era só no vale do silício que ocorriam as disputas.
Achei que apenas debaixo das sombras dos arranha-ceús que se mastigava um ao outro
Entre um cachorro-quente e um café.
Achei que só se falava da vida alheia em salões de beleza e porta de boteco
Achei que na cidade grande, gente pequena falava de pessoas miúdas!
Falar, mastigar, cuspir, achar, imaginar, indagar, fofocar...
Cansado de dentinhos podres mastigando fofocas em linguas verdes de sujeira e bafos de milênios de maldades
Uma semana na fazenda
Uma cura pra essa dor nas costas, um descanso para os olhos
Longe das noticias, das janelas, dos "pop ups"!
Ledo engano o meu...Assim como na cidade, o campo carrega suas intrigas
O pangaré solitário reclama da vida,chora e diz que vai embora
A vaquinha, deixa seus bezerrinhos famintos enquanto pasta por ai, procurando noticias quentes
Shiiii! A parede do celeiro tem ouvidos!
Evite ser visto com as galinhas
Passe longe do lago, tem piranha lá...
E o boi muge, bezerro berra, bode bodeja, cão late, ovelha berrega, pato grasna,
cuco cuca, burro zorna, grilo grizalha, sapo coaxa...
Tanto lá, quanto aqui:
"Já soube?"
"Wrebet"
"Tu viu?"
"Cocóricoooooo"
"Então, não tenho certeza, mas.."
"Muuuuuuuuuuuuuuuuuuu"
"Ta vendo aquela lá?"
"Quém,quém,quém!".

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Have you ever been in Piabetá?

Quando deixamos a serra rumo ao mar
Saimos cedo! Madrugamos!
Escova, pente, condicionador e creme de pentear
Bancos inclináveis, conforto e rodas a girar
Uma curva, outra curva, entre elas você diz:
"Diminiu! Deixa o macaquinho atravessar"
Macaquinhos, tatus, jaguatiricas, tão belos de se olhar
Longa reta pós serra, logo,logo estamos lá
Risos embalados por boa musica, musica de Burt Bacharach
Arvores, casebres, vaquinhas a passar
Belo carro esse, optei por todos os opcionais
Em beleza e boa vida não se deve economizar!
Bela manhã de sábado, bela mulher ao meu lado
Feia praça e cancela a me cancelar!
Feia fila, funcionários e tarifa de incomodar!
Mudo o rumo, mudo a prosa mudo a reta de lugar
Espantada me perguntas:
"Onde é que isso vai dar?"
Te respondo:
"Relax honey, have you ever been in Piabetá?"
"Era isso? Pensei que iámos a Copa"
"Sim, Copa é o lugar, Piabetá é só um jeito de burlar"
"Burlar?"
"É, Burlar! Essa tarifa me recuso a pagar!"
Sobe o vidro, põe os óculos o cenário é de amargar
Tudo pobre, tudo chão duro de pisar
Cachorro magro, casa pobre, povo maltratado de trabalhar
"Liga não, Logo passa! Ta calor, Liga o ar!"
"Ai que lugar feio, por aqui você vai voltar?"
"Não! vai ser noite, alguém pode me assaltar!"

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Deus

Deus, que é um conservador de extrema direita
Quando vai em reuniões do partido, esquece de regar o seu pequeno jardim
Seca o chão, morre o gado, lata d`agua na cabeça lá vai Maria
Sede, dor, fim da plantação.
Outras vezes, Deus, grande apreciador de esportes elitistas, vai jogar Squash
Antes, corre pra regar seu pequeno jardim
Dessa vez, displicente, esquece aberta a torneira
Cheia, inundação, morre o gado, fim da plantação, descem os morros, quebram os muros.
Quando tomado pelo tédio, Deus senta-se numa confortável poltrona de nuvem...
Nesses dias, geralmente no inverno, o nevoeiro vem antes da chuva fina
Um vento gelado varre as folhas secas pela rua
Nesses dias Deus se redime
Embaçam-se vidros de carro, onde dedinhos desenham corações e juras de amor
Dentro das janelas de luzes acesas, pés juntinhos disputam espaço no edredom
Um cheiro de café invade as varandas.
Deus deveria se apaixonar mais.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sem titulo

Me adestra então...
Tira de mim esse vocabulário sujo
Conserta minha postura
Me proíbe o bar
As más companhias
Salva também eles de mim...
Conserta esse boêmio
Mas leva junto essa dor
E esse medo da vida
E prometa abrir a janela
Me conserta
Me adestra então...
Só não me peça pra te mastigar de boca fechada.

domingo, 12 de setembro de 2010

Falta

Naquela tarde sentaram -se os dois
Hesitaram por um momento
Contemplaram o céu
Suspiraram...
A velha cadeira, um cigarro
O tapete e a falta.
Falta o cheiro de feijão
O barulho da panela
A conversa boa
Falta o rádio de pilha no programa evangélico
Ambos sentem falta e o vazio da falta de ter
O cão sente a falta do carinho
Da vasilha quase cheia
Agora vazia
O velho sente falta dos sentidos
Qual o sentido de uma bela tarde de sol?
Falta de quem o lembre de levar o casaco
E do troco certo
Do preço das coisas
Das coisas no lugar...
Anseiam ambos pelo tempo
Odeiam a noite e o armário de roupas
A cama fria de madrugada
Sentem a falta da presença feminina da casa
A "dona" se foi...
Pra sempre.

sábado, 4 de setembro de 2010

Teletragédia

Nas tardes de sábado, o mundo é vitima de crateras, vulcões e cometas.
Nas noites de domingo, os poucos sobreviventes se explodem com armas e granadas.

domingo, 22 de agosto de 2010

Hoje de novo

Ela vai descer do ônibus no ponto de sempre
Vai andar um quarteirão até chegar em casa
Vai abrir o portão de modo silencioso
Deixar o tênis na porta da sala
Ela vai dar um beijo na testa da avó, que assiste TV na sala
Vai seguir o barulho de máquina de costura até achar a mãe num quarto mal iluminado
Dar um abraço por trás e ganhar um afago na nuca
Seguir até a cozinha, um prato em cima da panela espera por ela
Não, só o café, sozinha na mesa da cozinha
Café morno e olhar pro nada
Ela vai entrar no banheiro
Ligar o chuveiro
Despir-se
Vai sentir a água cair forte sobre a testa
Vai abaixar a cabeça
Vai chorar
Vai chorar copiosamente
Vai sufocar o grito
Ela sempre morre no final do dia.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Você, Chico, eu e Maria

Eu era um milhão de pedacinhos jogados pelo chão, eu era um desses quebra-cabeças baratos, de peças de papel, vagabundo e difícil de montar. Fiquei assim depois que você se foi, com a desculpa que acabou o amor, que era melhor assim. Enquanto eu tentava me montar, pensava no real motivo de nossa separação. Por estar com o pensamento em outro lugar e por ser difícil me recompor, me montar, várias vezes coloquei a perna no lugar do braço e o fígado no lugar do coração. O pior é que quando eu ia à padaria desse jeito, as crianças choravam e velhas evangélicas me repreendiam. Eu estava um lixo!
Certo domingo de sol eu estava sentado na praça com o pensamento longe, certamente pensava em você, quando alguém se sentou do meu lado, era um amigo, um colega, conhecido, alguém que você vê uma vez na vida na casa de alguém, outra vez na morte na casa de outrem. Claro que ele não trazia boas noticias, ele me disse que ficou sabendo por intermédio de uma ex-amiga da irmã de um conhecido, que você era vista por ai acompanhada de um tal de “Chico” e que era muito comum vê-los caminhando naquela mesma praça, sempre no final da tarde. Esse meu “amigo” disse que só havia me contado o fato, pois tem um grande apreço por mim e que todos comentavam o quanto eu estava mal com sua partida. Agradeci e decidi ficar ali pela praça, pois mesmo que eu quisesse muito ir embora, eu precisava muito ficar!
Eu sabia que não estava preparado pra te ver com outra pessoa, principalmente naquele dia, pois a combinação daquele vinho barato, o “Best of” do Cat Estevens e outro homem em teus braços poderiam ser letais! Porem, eu não tinha mais nada a perder e queria ver quem era o tal sujeito. Quando o sol estava indo embora eu os avistei ao longe, caminhando calmamente os dois, perna esquerda juntos, perna direita juntos, numa sintonia invejável. Eu já era o pior dos seres humanos naquela hora, queria que a terra me engolisse inteiro, sofrer autocombustão, ser atingido por um meteoro, sumir! Nada parecia ser pior do que aquilo. Quando, olhando mais atentamente me dei conta de que não se tratava de qualquer “Chico”, não era o Chico da padaria ou o barbeiro Chico, era um que tinha um violão, belos olhos verdes e que já tinha comido todo mundo daquela rua, se tratava de Chico Buarque de Hollanda! Segurei meus pedaços e corri pra casa, passei pela porta, fechei-a, desmontei de novo.
Embora não acredite muito nesse lance de signo, dizem que o escorpiano tem um poder sobrenatural de se reinventar, de ressurgir mais forte de tamanha catástrofe, me apeguei nisso enquanto colocava uma orelha no lugar do nariz. “Assim como não há bem que dure, não há mal que perdure”; ”o tempo é o senhor da razão!”; “o castigo vem a cavalo”; “ a vingança é um prato que deve ser servido frio”; “chicotim queimado é muito bom, quem olhar pra trás, leva um beliscão”. Eu já tinha planejado uma vingança e já tinha me remontado da maneira certa, faltando um baço ou um siso, nada que fosse fazer muita falta. E embora eu tenha que aturar um cunhado chato e ter que fingir ter dor de cabeça toda noite, nenhum dinheiro no mundo poderia pagar a cara que você fez quando me viu tomando um chopp com a Maria Bethânia na mesma praça onde te vi com o tal do “Chico” que, diga-se de passagem, já estava comendo por outras freguesias.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Ex-herói

Saudades de sair voando por ai atrás do teu doce preferido
De arrepiar os pelos do teu corpo com meu sopro gelado
De ver através do teu vestido com meu olhar de raio-x
Esquentar o café com minha visão a laser
Usar o super devaneio, enquanto você emendava assuntos infinitos.
Hoje sou recolhido junto com os copos vazios em mesas de bar
De tão despercebido que sou.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Bailarina

Noite da sábado, teatro cheio
Ternos engomados e belos vestidos
Lugares marcados
Engole logo essa pipoca, desliga o celular
Rápido, silêncio, vai começar!
Diminuem-se as luzes
Orquestra a tocar
Entra a bailarina
Linda, na ponta dos pés
Um giro pra cá, e agora, ao revés
Bailarina vem pulando
Bailarina vem gingando
Bailarina vem dançando
Bailarina vem balançando
E o público, bocejando...
Então, num erro primário...
Bailarina vem tropeçando
Bailarina vem cambaleando
Bailarina vem capotando
Bailarina vem derrubando, tudo que tem pela frente
E o público gargalhando...
Então depois de tantos "andos" e "desandos"
A pobre bailarina nunca mais calçou as sapatilhas.

Banalidade dos boçais

Fácilmente solúvel em agua turva
Bula de fácil entendimento
Leviano, fútil
Inconstante; inútil
Volúvel
Banal!
Contém conservante, acidulante,corante, emulsificante
Nenhum caráter...
Figurinhas carimbadas
Muda rótulo, muda marketing, nova campanha!
Mesmo falso e tolo produto de prateleira.
Milhares iguais...

Hobby

Algumas crianças colecionam pipas, figurinhas, bonecas.
Alguns velhos colecionam embalagens de remédio e chinelos.
Alguns homens colecionam camisas de times de futebol.
Algumas mulheres colecionam bolsas e sapatos.
Alguns meninos colecionam mentiras
E algumas meninas colecionam...meninos!

Felicidade é isso

Sai dessa rapaz!
Nada adianta ficar trancado em casa, janela fechada, dias iguais
Emburrado, maltratado e engordando
"A vida é uma roda gigante"
Já disse algum escroto, tolo e ignorante.
Abre a janela e a porta, deixa o sol entrar e o cachorro sair
Implicou também a ele a tua sina de solitário
E ele não via mais a hora de sumir, enterrar ossos por ai.
É hora de sair andando sem destino
Largar a terapia
Gastar solas de sapatos onde nunca se foi
Esquecer um pouco teus "ais"
Cantarolando jingles de candidatos estaduais

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Nasci ruim

Quando eu nasci, aquele tapa na bunda já me deu uma vontade enorme
de revidar.
Indaguei-me o porquê de outros bebês no berçário terem um lençol mais
bonitinho, com estampas legais, primeiro indicio de inveja.
Pulei a infância, a pré-adolescência e a adolescência, me concentrei na
"futil-ídade".
Já sei o que quero ser quando crescer... Anticristo! Anticristo de profissão.
Se bem que, me interessam alguns cargos públicos no Maranhão.
Caráter pra isso eu tenho, já que sou desprovido de qualquer indicio de um.

domingo, 8 de agosto de 2010

Sai dessa igreja menino...Vai pro bar!

Andamos reto sobre calçadas tortas
A cidade dorme o sono tranquilo do além -madrugada
Velhos e suas pantuflas
Programas de humor de conteúdo duvidoso piscam pelo lado de fora da janela
Um livro de auto-ajuda e chá
Casais separados numa cama king-size, frio.
Não pra nós...
O blues só é blues até chegarmos lá
Por vezes o blues é tão blues que fica roxo!
Só até chegar,só até chegar...
"Mesma hora no bar?"
Tudo o que é etilico fica pra segundo, terceiro plano
O que conta lá são os abraços e as risadas mais sinceras
E a saudade que fica do lado de fora por alguns instantes
O blues já não é tão blues, é algo assim...azul bebê!
E as filosofias de buteco
E o papo sério
E o olho no olho
E o riso, riso bom
Depois, andamos torto sobre calçadas retas!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Condomínio

O sol dá as caras ainda sonolento e um ônibus quase vazio vai se afastando do mundo real. Deixa pra trás casas juntinhas uma das outras, pessoas, portas de aço que ainda não se abriram. O ônibus continua e na demorada viajem, um pequeno cochilo e um pacote de biscoitos, quando a pequena se dá conta o visual lá fora é outro, estrada de chão, muito mato e arvores! Um cachorro magrinho dormindo atrás de uma cerca de arame não passa despercebido pelos olhinhos curiosos da menininha. De mãos dadas com a avó vai caminhando e o próprio ônibus agora, fica pra trás.
Falante a pequena! E toda a energia que lhe sobra em passinhos apressados, falta na avó, de andar curvado e lento, cansado. Passam por um muro alto e um portão imponente, mas já estiveram ali antes e o olhar sisudo do rapaz de boné e botas da lugar a um sorriso acolhedor ao ver um vestidinho rosa desbotado carregando uma boneca velha. A pequena dentro do vestido ganha um afago e prossegue, continua por ruas bem cuidadas, num lugar onde as casas não têm muros!
Enquanto a boneca e a menina descansam os pés descalços num sofá confortável, a senhora prepara um pão “com coisa boa dentro”. Depois de alimentada é hora de dormir um pouquinho, numa cama que pertence a uma princesa que a menininha só conhece por fotos e que não ficaria nada satisfeita em saber que um vestido meio amarrotado e velho descansava ali. Na hora do almoço conta casos e reluta em comer as verduras, mas come. E depois enquanto a casa vai ficando cheirosa e arrumada e menininha ainda corre pelo jardim. Tudo limpo, arrumado e o chão parece um espelho. Hora de ir.
Agarrada a sua boneca os passinhos agora são lentos, passinhos de quem parece não querer voltar pro mundo real. Passam pela rua em direção ao portão, as três em silencio: pequena, boneca e avó. Ganha um afago novamente e segue em direção ao ônibus. O sol se despede, o mundo segue normal, pessoas reais entram no ônibus, marmitas, ferramentas, olhares tristes e cansados. É escuro e frio, quando a menininha de boneca velha e vestido amarrotado volta pra casa, no mundo real.

Lá vem Tereza

Lá vem Tereza, num andar que sugere safadeza.
Seus cabelos negros e lisos contrariam a natureza.
La vem Tereza...
Quando a vejo vindo ao longe, escondo o cigarro e a cerveja
Ignora-me, passa reto, sempre assim.
De novo vem ela, pele preta, sorriso branco de giz, e naqueles quadris
Caberiam três de mim!
Quem sabe ela prefira um cafajeste?
Copo na mão, cigarro na boca, pose e topete.
Nada...
Ouso arriscar que Tereza é racista e por mais que eu tente
Que eu insista, minha pele desbotada e amarelada me condena.
Ai, meus sonhos de café com leite!
Ai, meus pesadelos de teus “não”
Tereza, eu sou Flamengo, só me falta você, um Fusca e um violão.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Cidade Grande

Nunca vou me habituar. Nem imaginei que seria tão difícil. Tenho quinze minutos pro meu café diário, e perco dez, só em tentar atravessar a rua até o boteco de frente pro prédio, nunca vi tanto carro! De onde eu venho posso deitar na rua e contar direitinho umas boas horas sem passar nenhum carro de boi. Quando consigo finalmente atravessar, na calçada, ainda levo uns três tropeços, uma cotovelada e um safanão até entrar no bar. Eta povinho apressado! Parece até que vai tirar o pai da forca! Falatório danado e o cara do lado de trás do balcão parece ter vindo lá de cima também, mas é mitido que só. Com essa cara queimada de sol se acha carioca, mas esse sotaque e essa cabeça me enganam não. Café ralo e pão fino eu peço, e o cabeçudo me alerta com um tapa no balcão que já ta pronto. Oxi, nem respira posso!
Engulo meu café e já volto correndo pro prédio. “Abre portão, fecha portão! Abre portão, fecha portão”. Troço chato! Me da uma enxada que eu me viro. Ter que ficar olhando esses sujeitos na câmera é que num dá. Nunca sei se os cabra tão indo ou vindo! Me atrapalho todo!Paraíba nasceu pra duas coisa: passa sede e ser porteiro!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ciume

Nem o primeiro disco do Sabbath
Nem Aleister Crowley
Nem a bíblia negra
Nem jornais regionais do Maranhão
Nem o grupo de jovens da Metodista
Nada disso me causou tanto terror
Nada disso me atormentou tanto a alma
Como os escritos de canetas coloridinhas
Naquela tua agenda de menina.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Na praça

Era um triste e solitário banquinho de praça
Suas cores pálidas e desbotadas nem de longe lembravam
Que um dia ele foi belo e colorido.
Hoje, descascado e feio
Seus parafusos enferrujados.
Aquele banquinho num canto escuro da praça.
Sonhava, sonhava o banquinho.
Sonhava o dia em que certa menina de olhos de jabuticabas
Sentaria nele e descansaria suas volumosas pernas
Depositaria sobre o banco sua bolsa de menina
E pelo peso da bolsa o velho banquinho tentaria descobrir o que
Ela carregava ali dentro, dentro da bolsa, dentro dela mesma.
Apaixonado o banquinho...
Esperava todo o dia, quando pela tardinha, passava a moça
Sempre apressada!
Esperava o banquinho, sol e chuva.
O vento carregava e devolvia todas as folhas da velha praça
E continuava lá o banquinho, solitário, esperando seu amor.

domingo, 20 de junho de 2010

Minha religião

Te amo! E te amo tanto, que te amaria sendo você o que fosse! Se tu fosses uma dessas crentes fanáticas, de saião no pé e cheia de fé, ainda assim, te amaria. E se meu ateísmo convicto fosse um problema, eu aceitaria então, vestir terno, gravata e bíblia.
Andaria por ai, de vigília em vigília ao teu lado e teu “aleluia” me arrepiaria os cabelos da nuca!
Eu viveria da fé em nós dois. E Jesus, morreria de desgosto em saber que eu fui ao pai, não por ele, mas por você.
Aceitaria tua saia longa e essa gola alta. Mesmo assim, mesmo assim, o pouco do teu corpo que se revelasse pra mim, seria de grande valor e eu poderia perder noites de sono lembrando de tuas canelas nuas! Ah essas tuas canelas nuas!

Roteiro antigo

Foi deitado na minha cama com uns onze anos de idade, que eu tive um lampejo, uma dessas idéias raras! Foi uma coisa tão grandiosa, que passei o resto da noite acordado, aperfeiçoando o que seria o meu primeiro roteiro de um grande filme! Na verdade, toda a história nasceu a partir dessa grande sacada que eu tive. Eu julgava minha idéia tão sensacional, que já me imaginava sentado em frente a algum grande executivo da Universal Studios, discutindo sobre o orçamento para filmá-lo, quem atuaria e quem poderia dirigi-lo.
Hoje, alguns anos depois eu posso finalmente revelar o meu grande roteiro.
“Conde Drácula sempre foi um péssimo vizinho! Mal-educado, só perambulava por ai à noite, não freqüentava a igreja e nunca se ouviu de sua boca um: “bom dia”. Mas não eram apenas essas as reclamações em torno do conde. Ele contratava os serviços de empregadas para limpar o seu castelo e depois de ter os seus 37 cômodos limpos (entre quartos, sala de estar, sala de jantar, sala de tortura, sala de orgias, calabouços, etc) as pobres empregadas ainda eram transformadas em vampiras pelo conde e eram então obrigadas por ele a trabalhar no período da noite e o que é pior, sem o abono salarial merecido!
Drácula causava transtornos em qualquer forma que assumisse: Na forma de morcego, ele depenava o pé de ameixa do dono da taverna. Seu hobby preferido nessa forma, era defecar sobre as beatas que saiam da igreja em dia de missa, era comum ver um morceguinho morrendo de rir após acertar em cheio um chapéu caro daqueles. Na forma de lobo ou “cachorro dos infernos” (como era conhecido no bairro), ele comia toda a ração dos cães, além de pisar propositalmente no cimento fresco das calçadas. Era conhecido também por suas extravagantes festas, que contavam com a presença de todos os tipos de monstros e políticos.
Cansados disso tudo, os moradores da pacata, distante e fria Transilvânia resolveram fazer justiça com as próprias mãos! Reuniram-se na taverna e numa votação transparente e justa, decidiram que o jovem Trevor Belmonte (sim, eu roubei esse nome de um jogo de Nintendo. Com onze anos eu nem sonhava o que era direito autoral) seria o escolhido pra matar Drácula. O fato de Trevor ser o mais pobre e conseqüentemente dever muito no jogo do bicho não influenciou em nada os que votaram ali. Bolaram um plano perfeito, o filho do dono da taverna munido de uma grande tesoura, cortou o cabo da TV por assinatura que o conde usava. Minutos depois, vestido como técnico de TV o jovem Trevor bateu na porta do castelo. Drácula parecia irritado, reclamou que pagava em dia suas contas e que o serviço era péssimo, falou ainda que não queria de maneira nenhuma perder o novo filme de seu grande rival, o Lobisomem, que o canal TCM transmitiria naquela noite. Carregando na sua bolsa de ferramentas, alho, crucifixo, uma estaca e água benta, o jovem entrou na residência do príncipe das trevas.
Quando o conde bobeou, o técnico de TV a cabo puxou de sua bolsa um vidro de água benta e jogou na cara do vampiro, que gritou numa voz grave, um grito desesperado de dor.
Nessa hora o intrépido rapaz, sem perder muito tempo puxou uma enorme estaca e partiu decidido a matar o vampiro. Ajoelhou-se sobre o conde que estava caído, puxou a estaca com as duas mãos por trás da cabeça e preparou-se para desferir o golpe, quando então!!!!”
Nessa hora, entraria em cena minha grande idéia, o que me tirou a noite de sono e me fez aos onze anos me sentir um pequeno gênio. Quando o personagem da estaca fosse matar o conde Drácula, faria uma descoberta fenomenal, que deixaria o publico embasbacado e deslumbrado, além de perplexo! O peito do conde, ali, pronto pro abate, revelaria uma pequena marca, que eu ainda não tinha idéia do que seria: uma marca de nascença, vitiligo, um furúnculo mal curado, marca de vacina, mordida de cão... Então o jovem Trevor, descobriria ali, junto com o publico, num momento de grande emoção (eu tinha pensado até na trilha sonora que seria composta por Jerry Goldsmith, que fez um ótimo trabalho na “Profecia”) que Drácula, o cão das trevas, a encarnação do mal, era seu irmão!
Aquele irmão mais velho, que foi embora de casa reclamando de falta de liberdade, coisa de adolescente, o conde sempre foi um rebelde e ter hora marcada pra chegar em casa era o fim pra ele. O jovem descobriria ali ao reconhecer a marca, que se tratava de seu irmão de sangue.
Eu estava animado e dando os últimos retoques nesse grande roteiro, quando percebi, pouco depois, que minha “grande idéia” já tinha sido a “grande idéia” de alguém, muito, muito antes de mim e que hoje se trata de uma coisa totalmente previsível e clichê. Não podemos negar que embora seja uma formula totalmente desgastada, ela ainda funciona e é aplicada religiosamente em todo ultimo capitulo de novela das oito, quando o mocinho descobre que o vilão é seu irmão ou que não precisaria mais viver na miséria, pois o dono daquela grande empresa, também é seu irmão.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Pensamentos...

Ando com um pressentimento estranho, sinto que vou morrer nos próximos dias, e que na melhor das hipóteses, duro um mês! Tenho esse pressentimento há pelo menos uns vinte anos.

Nunca tive pretensão de ser um grande escritor, estilo Manoel Carlos assim. Eu nunca ia pensar em personagens gêmeos, um bem-humorado, outro mal-humorado, um bem vestido, outro largado e com os cabelos divididos para lados diferentes. Achei sensacional isso!

Se Roberto Justos é assim, tão foda no que faz... Porque o programa dele é no SBT?

Na minha adolescência, ver um peito numa revista ou na TV era coisa rara! Hoje, qualquer criança pode digitar “zoofilia” no Google.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Reflexos de fogão

Ontem, descobri que cresci, só ontem. Há alguns anos atrás, que me parecem décadas ou séculos, na verdade, parece que foi em outra vida, quando pela noitinha logo depois do dever de casa eu costumava me sentar em frente ao fogão. Encostado na parede e tagarelando sem parar, eu via perfeitamente meu rosto de moleque refletido no vidro do forno. O rosto que eu via era de um desdentado e sempre curioso Lucas.
Então, o tempo sempre cruel, passou e passou. Sem se importar com tudo o que passa junto com ele. E tanta coisa passou com ele, passou a panela, a conversa, o café quentinho, o dever de casa e a própria mãe que cozinhava ali, também passou.
Ontem, milênios depois disso tudo, ao requentar um café de anteontem, sentei de novo em frente ao fogão. Instantaneamente toda a memória daquele tempo voltou à minha cabeça. Mas o que eu vi, não era mais um moleque curioso e risonho. O que eu vi e que me deu a total consciência da minha velhice, não foi um rosto de homem velho e carrancudo, foi a falta de um rosto! O que eu vi em frente ao fogão, foi um pescoço... e só!

terça-feira, 11 de maio de 2010

Quando eu me for

Quando eu for número numa prancheta,
roupa de domingo e buraco no chão.
O que vai ficar de mim, na memória rala,
dos ralos companheiros, serão algumas piadas requentadas
e poucas ironias baratas.
O que nunca foi dito, ou até dito propositalmente baixo
para que nunca fosse escutado, o que eu carrego nesse peito trancado,
será farto banquete para verme branco e esfomeado.

Aos sem mãe.

Aos encarcerados, políticos e trapaceiros.

Não saíram do chão ou vieram de “Oz”, nem foram entregues por cegonha ou Sedex.
Tiveram sim, progenitora e foram concebidos no particular, no SUS ou por parteira.

Aos árbitros de futebol, atendentes de cartão de crédito e contraventores.

Gozaram até certo momento de leito fresco e terno, colo quente e voz suave de mãe.

Aos egoístas, estúpidos e embriagados.

Não joguem nas costas do mundo a tristeza e a dor de terem perdido o mimo.
Não aborreçam as famílias felizes do mundo com seus berreiros e estripulias de garotos
Chorões.

Aos advogados, sentenciados e juízes

Joguem fora o argumento típico e funcional sempre utilizado para defender os marginais chorões. “Meritíssimo, entenda, meu cliente é um rapaz atormentado, o coitado não tem mãe! Nunca na vida teve o prazer de fazer trabalhinhos escolares utilizando feijão. Nem nunca tirou foto com o cabelo repartido ridiculamente de lado para presentear a mesma no dia das mães”.

Aos pastores, banqueiros e traficantes.

Vingam-se dos que ainda tem a dona do lar, e fazem os iludidos e viciados retirarem tostões furados de bolsos ainda mais magros.

Aos escorpianos, ciumentos e mal-humorados.

Pratiquem o amor! Deixem esse rancor e mágoa de quem não tem onde passar o domingo. Sugiro que adotem uma mãe. Mesmo que seja uma imagem de mãe. Uma mãe “Casas Bahia”, aquela senhora confiável que aparece na TV com ofertas e pagamento a perder de vista.

Aos canibais, psicopatas e esquizofrênicos.

Procuram em cada vitima e cada coluna de parede a imagem da progenitora, o cheiro e o gosto dela. Queriam vocês mesmos, ser suas próprias mães.

Aos mentirosos, solitários e vendedores de seguro.

A esses, que figuram na classe mais amena dos “sem mãe”, a opção é comprarem porta-retratos de lojas de magazine. Escolham aqueles que têm a foto de mãe já acompanhada de netos e quando aquela atípica visita aparecer e perguntar quem é aquela simpática senhora, dirão então, com lágrimas nos olhos: “É minha mãe”.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Eu, minha imaginação e a capa do botijão.

Lembro perfeitamente, parece que foi ontem e ao mesmo tempo me parece outra vida.
E era! outra vida, diferente da minha vida atual. Lembro dos anúncios de TV, a televisão me parecia inocente, mesmo olhando com meus olhos de hoje. E foi nela, na televisão que eu vi.
O bordão hoje totalmente ultrapassado era novinho em folha. (novinho em folha já soa datado... to velho!).
Será um pássaro? Será um avião? Não! É o Super-homem! Foi como uma revolução silenciosa diante de meus olhinhos curiosos, “como ele faz aquilo? Mãe! Olha! Quem é? Vai passar na TV”!
Naquele dia eu esperei, e depois da sempre chata novela das oito, que tem esse nome porque há muito tempo ela começava realmente às oito, iria começar minha vida, meus sonhos, meu filme!
Maravilhado assisti cada minuto da trama sem me mexer, era perfeito! O ultimo filho de Krypton voava, saltava, segurava helicópteros com uma mão, era sensível, pagava seus impostos, tinha um bom emprego, era um democrata... Eu queria ser ele!
Levantei da poltrona, não queria perder nenhum minuto, eu era o filho bastardo de Krypton, queria voar também, ter visão de raio-x, dar pontapés nos bandidos, ter dentes branquinhos e olhos azuis.
Mas resolvi deixar pro outro dia, já que pelas leis de Krypton era preciso respeitar a hierarquia familiar, e minha mãe me mandava pra cama.
Levantei antes do despertador, com um fôlego renovado, cheio de vontade na vida, eu era o Super-homem, só precisava de um uniforme. E depois de uma procura intensa pela casa e pelo armário, quando já tinha perdido as esperanças, vi.... A capa do botijão, botijão de gás! Era perfeita, tinha até cordinha pra amarrar no pescoço! Tinha umas flores bordadas também, mas isso eu ignorei, já que capas de botijão nunca viriam com a insígnia do meu herói favorito... Então éramos eu, minha imaginação e a capa do botijão!
Corria pela casa atrás dos bandidos imaginários, saltava de um sofá pro outro como se fossem prédios, criava meus próprios efeitos sonoros, o roteiro da minha história eu escrevia, sempre baseado no clichê claro!
Na escola eu era só eu mesmo, usava minha identidade secreta. Mas quando ninguém estava olhando eu voava até minha sala ou fugia da mesma pela janela, meus poderes eram infalíveis, nem o plano "Cruzado" era mais forte do que eu (o tempo demonstrou isso).
Fui muito, muito feliz... Eu parecia indestrutível, nada abalava a minha fé no meu herói, nem quando a professora contou uma história absurda sobre guerra fria, Estados Unidos (onde meu herói vivia), URSS, corrida espacial, patriotismo... Enfim, a cretina disse que meu herói era uma criação capitalista, que as cores do seu uniforme eram o mesmo da bandeira Yankee, que tinha cara de universitário americano. Ridículo! Eu não acreditei nela... era só... Mal-humor. Deve ser por que ela já era velha... Nunca tinha casado. Ainda hoje não acredito nela, mesmo percebendo que o homem de aço Nunca usaria uma roupa laranja ou verde! E sobre a cara dele... Como ele deveria ser? Ter rosto fino? Cabelo baixo e ruim? Nariz grande? Ele deveria se parecer com um judeu??? Nem Jesus se parece! Minha professora estava errada, e tenho certeza que se ainda viva, ainda solteira.
Minha capa se perdeu no tempo, eu mesmo me perdi, meu herói perdeu espaço pras futilidades da adolescência, passou a vender pouco.
Morreu e ressuscitou, virou seriado, casou, teve filhos...
Hoje a novela começa as nove... ainda é chata, criança não pode ver,
Nem esperar pelo programa que vem a seguir, alguém vai atirar em alguém, super-homem não vai aparecer... nunca mais vi uma capa de botijão... meus roteiros perderam a graça...cresci.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

cena de filme

Deitado no sofá, Zé era o retrato do abandono. Barba por fazer, roupa de dois dias atrás e macarrão instantâneo agarrado nos cabelos. Aliás, macarrão instantâneo e salgados de bar eram as únicas refeições possíveis, desde que Joana, sua esposa, havia partido. Joana estava na casa da mãe, que ficava no interior, a alguns quilômetros do sofá de Zé. E a “jararaca”, que era como seu genro a apelidara, fazia jus a tal apelido. Pois fez a cabeça da filha para que deixasse Zé depois que ele perdeu o emprego. Ela dizia que aquilo não era homem! Não tinha um emprego decente, não tinha um carro decente, um nome decente! E que amor... Isso era coisa de filme. Joana, sempre submissa as ordens da mãe, se foi.
Com o coração apertado Zé sofria sozinho em casa. Não saia na rua, evitava a luz do sol, o rádio, evitava se olhar no espelho. Evitava principalmente o quarto, onde a imagem de Joana se fazia absurdamente presente e o armário vazio era a imagem da morte.
Fazia uma semana de solidão e pelo andar da carruagem, Zé não duraria mais dois dias. Se não morresse de tristeza os salgados de Tião (dono do bar) o fariam. Então ao por uma jaqueta surrada antes de sair em busca de alimento, futucou as mãos num bolso escondido na parte de dentro do agasalho a fim de procurar alguma nota perdida. Puxou um guardanapo esquecido, numa letra apagada um singelo: “Te amo” escrito por sua esposa. Sua visão embaçou e logo molhou o papel com seu choro. Zé trincou os dentes e brigou com Deus, gritou e amassou o guardanapo. Então foi até o banheiro e se olhou no espelho. “Acabou” ele disse. “acabou o drama! Acabou a dor e a covardia!” bradou como um guerreiro desses de filme. Fez a barba, tomou banho e colocou a camisa que ganhou da mãe em seu casamento. Pegou a chave do Fusca e saiu!
Dirigiu até a casa da sogra e parou devagar no portão, tentou não fazer barulho, mas o motor de seu fusca era bem explícito em seu trabalho árduo. Caminhou até a porta da cozinha que se fazia entreaberta. Não conseguia ver nada, porém ouviu bem o que sua sogra dizia sobre ele. Aguentou tudo o que a velha dizia, quando palavras como: “manézão” e “bobalhão” formam proferidas pela cobra, Zé encheu-se de ira! Afastou-se, meteu o pé na porta a fim de causar impacto. E causou! As dobradiças enferrujadas daquela velha porta não agüentaram o chute e toda a porta veio abaixo fazendo um barulho estridente de madeira e ferro no chão.
Zé hesitou por um momento sob o portal da casa, então entrou imponente. Puxou a camisa de botões pela parte de baixo e estufou o peito, nesse momento a camisa mostrou-se aberta na parte de cima e num peito branco e magro um único fiapo de cabelo se revelou. Joana que estava na mesa separando feijões ficou pasma com a atitude surpreendente do marido e a sogra estava de pé, próxima ao fogão. Quando a velha ergueu a colher de pau e se preparou para exculhambar o invasor, ele disse em uma voz gutural: “Cala a boca!”. Na mesma hora a velha, que desde criança sempre se mostrou “mandona” e que gritava com todas as outras crianças, namorados, marido e filha, calou-se. E aquele grito foi tão imponente que fez a sogra de Zé sentir certo arrepio na nuca e ter partes esquecidas pelo tempo, levemente lubrificadas.
Joana parecia não acreditar naquilo, naquela cena de filme. Parecia não acreditar que seu príncipe arrebentara a porta e tinha um fusca do lado de fora à sua espera. Zé caminhou até a mulher, segurou suas mãos, olhou dentro dos olhos dela e disse: “Te amo mulher! Pega tuas malas, vamo comigo!”
Joana levantou-se da mesa e foi logo pegar as coisas dela, enquanto a mãe, recobrando o juízo, ou a falta dele, danou a berrar como louca! Tanto Zé como Joana ignoravam as ataques malvados da velha, que carregava a panela de arroz e tentava convencer a filha de que era errado, que amor é coisa de filme.
Foram juntos até o carro, colocaram as roupas no banco de traz e entraram, ainda com os protestos da mãe. Zé perdeu ainda uns minutos tentando fazer seu carro pegar e a sogra nesse tempo perdia a voz, já rouca. Saíram cantando pneu e deixando uma nuvem de óleo queimado na cara da sogra, que ainda berrava do portão.
Se foram felizes para sempre, não sei. Se foram felizes até onde o carro de Zé agüentou, também não sei. Se tiveram filhos não sei. Não sei de mais nada. Eu fiquei aqui, antes da curva, e vi o carro de Zé sumir entre a fumaça.

domingo, 28 de março de 2010

Velho

Esse velho aqui sou eu
Sentado no sofá, mastigando a própria língua.
Esse velho aqui sou eu
Mal-humorado e chato
Evitado por crianças e gatos.
Esse velho sentado no sofá
Sem entender nada do que vê na TV, sou eu.
Velho, velho,velho...
Esse velho que perdeu tudo o que tinha sou eu
Que ficou pra trás
Esse velho sentado no sofá sou eu,
Esqueço meu próprio nome as vezes...
Mas sempre lembro de você.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Hoje eu não vou pra escola

Hoje eu não vou pra escola, vou te encarar na cozinha com um olhar sério e pidão, você cúmplice de meus mimos vai balançar a cabeça em sinal de aprovação.
Vou almoçar sem a pressa corriqueira e ouvir a condução se distanciar sem me preocupar.
Observar com olhar curioso tua mão suja de sabão e perguntar por que se seca pratos.
Deitar no teu colo e ouvir histórias de quem viveu um pouquinho só mais que eu. Vou fazer perguntas absurdas e te pedir conselhos, também vou te divertir com os meus próprios conselhos de quem pouco viveu.
Stop-motion é o efeito usado no filme que assistimos na TV, stop-motion deveria ser usado nessa tarde no sofá, stop-motion hoje, porque amanhã eu vou ter que ir pra escola.
Deleito-me de teu colo e tua voz e desejo que esse momento dure pra sempre. Sei que não, sei que amanhã vai ter correria, sinal, gritaria, vozes e giz, mas isso, só amanhã, hoje, eu não vou pra escola.