quinta-feira, 29 de abril de 2010

Eu, minha imaginação e a capa do botijão.

Lembro perfeitamente, parece que foi ontem e ao mesmo tempo me parece outra vida.
E era! outra vida, diferente da minha vida atual. Lembro dos anúncios de TV, a televisão me parecia inocente, mesmo olhando com meus olhos de hoje. E foi nela, na televisão que eu vi.
O bordão hoje totalmente ultrapassado era novinho em folha. (novinho em folha já soa datado... to velho!).
Será um pássaro? Será um avião? Não! É o Super-homem! Foi como uma revolução silenciosa diante de meus olhinhos curiosos, “como ele faz aquilo? Mãe! Olha! Quem é? Vai passar na TV”!
Naquele dia eu esperei, e depois da sempre chata novela das oito, que tem esse nome porque há muito tempo ela começava realmente às oito, iria começar minha vida, meus sonhos, meu filme!
Maravilhado assisti cada minuto da trama sem me mexer, era perfeito! O ultimo filho de Krypton voava, saltava, segurava helicópteros com uma mão, era sensível, pagava seus impostos, tinha um bom emprego, era um democrata... Eu queria ser ele!
Levantei da poltrona, não queria perder nenhum minuto, eu era o filho bastardo de Krypton, queria voar também, ter visão de raio-x, dar pontapés nos bandidos, ter dentes branquinhos e olhos azuis.
Mas resolvi deixar pro outro dia, já que pelas leis de Krypton era preciso respeitar a hierarquia familiar, e minha mãe me mandava pra cama.
Levantei antes do despertador, com um fôlego renovado, cheio de vontade na vida, eu era o Super-homem, só precisava de um uniforme. E depois de uma procura intensa pela casa e pelo armário, quando já tinha perdido as esperanças, vi.... A capa do botijão, botijão de gás! Era perfeita, tinha até cordinha pra amarrar no pescoço! Tinha umas flores bordadas também, mas isso eu ignorei, já que capas de botijão nunca viriam com a insígnia do meu herói favorito... Então éramos eu, minha imaginação e a capa do botijão!
Corria pela casa atrás dos bandidos imaginários, saltava de um sofá pro outro como se fossem prédios, criava meus próprios efeitos sonoros, o roteiro da minha história eu escrevia, sempre baseado no clichê claro!
Na escola eu era só eu mesmo, usava minha identidade secreta. Mas quando ninguém estava olhando eu voava até minha sala ou fugia da mesma pela janela, meus poderes eram infalíveis, nem o plano "Cruzado" era mais forte do que eu (o tempo demonstrou isso).
Fui muito, muito feliz... Eu parecia indestrutível, nada abalava a minha fé no meu herói, nem quando a professora contou uma história absurda sobre guerra fria, Estados Unidos (onde meu herói vivia), URSS, corrida espacial, patriotismo... Enfim, a cretina disse que meu herói era uma criação capitalista, que as cores do seu uniforme eram o mesmo da bandeira Yankee, que tinha cara de universitário americano. Ridículo! Eu não acreditei nela... era só... Mal-humor. Deve ser por que ela já era velha... Nunca tinha casado. Ainda hoje não acredito nela, mesmo percebendo que o homem de aço Nunca usaria uma roupa laranja ou verde! E sobre a cara dele... Como ele deveria ser? Ter rosto fino? Cabelo baixo e ruim? Nariz grande? Ele deveria se parecer com um judeu??? Nem Jesus se parece! Minha professora estava errada, e tenho certeza que se ainda viva, ainda solteira.
Minha capa se perdeu no tempo, eu mesmo me perdi, meu herói perdeu espaço pras futilidades da adolescência, passou a vender pouco.
Morreu e ressuscitou, virou seriado, casou, teve filhos...
Hoje a novela começa as nove... ainda é chata, criança não pode ver,
Nem esperar pelo programa que vem a seguir, alguém vai atirar em alguém, super-homem não vai aparecer... nunca mais vi uma capa de botijão... meus roteiros perderam a graça...cresci.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

cena de filme

Deitado no sofá, Zé era o retrato do abandono. Barba por fazer, roupa de dois dias atrás e macarrão instantâneo agarrado nos cabelos. Aliás, macarrão instantâneo e salgados de bar eram as únicas refeições possíveis, desde que Joana, sua esposa, havia partido. Joana estava na casa da mãe, que ficava no interior, a alguns quilômetros do sofá de Zé. E a “jararaca”, que era como seu genro a apelidara, fazia jus a tal apelido. Pois fez a cabeça da filha para que deixasse Zé depois que ele perdeu o emprego. Ela dizia que aquilo não era homem! Não tinha um emprego decente, não tinha um carro decente, um nome decente! E que amor... Isso era coisa de filme. Joana, sempre submissa as ordens da mãe, se foi.
Com o coração apertado Zé sofria sozinho em casa. Não saia na rua, evitava a luz do sol, o rádio, evitava se olhar no espelho. Evitava principalmente o quarto, onde a imagem de Joana se fazia absurdamente presente e o armário vazio era a imagem da morte.
Fazia uma semana de solidão e pelo andar da carruagem, Zé não duraria mais dois dias. Se não morresse de tristeza os salgados de Tião (dono do bar) o fariam. Então ao por uma jaqueta surrada antes de sair em busca de alimento, futucou as mãos num bolso escondido na parte de dentro do agasalho a fim de procurar alguma nota perdida. Puxou um guardanapo esquecido, numa letra apagada um singelo: “Te amo” escrito por sua esposa. Sua visão embaçou e logo molhou o papel com seu choro. Zé trincou os dentes e brigou com Deus, gritou e amassou o guardanapo. Então foi até o banheiro e se olhou no espelho. “Acabou” ele disse. “acabou o drama! Acabou a dor e a covardia!” bradou como um guerreiro desses de filme. Fez a barba, tomou banho e colocou a camisa que ganhou da mãe em seu casamento. Pegou a chave do Fusca e saiu!
Dirigiu até a casa da sogra e parou devagar no portão, tentou não fazer barulho, mas o motor de seu fusca era bem explícito em seu trabalho árduo. Caminhou até a porta da cozinha que se fazia entreaberta. Não conseguia ver nada, porém ouviu bem o que sua sogra dizia sobre ele. Aguentou tudo o que a velha dizia, quando palavras como: “manézão” e “bobalhão” formam proferidas pela cobra, Zé encheu-se de ira! Afastou-se, meteu o pé na porta a fim de causar impacto. E causou! As dobradiças enferrujadas daquela velha porta não agüentaram o chute e toda a porta veio abaixo fazendo um barulho estridente de madeira e ferro no chão.
Zé hesitou por um momento sob o portal da casa, então entrou imponente. Puxou a camisa de botões pela parte de baixo e estufou o peito, nesse momento a camisa mostrou-se aberta na parte de cima e num peito branco e magro um único fiapo de cabelo se revelou. Joana que estava na mesa separando feijões ficou pasma com a atitude surpreendente do marido e a sogra estava de pé, próxima ao fogão. Quando a velha ergueu a colher de pau e se preparou para exculhambar o invasor, ele disse em uma voz gutural: “Cala a boca!”. Na mesma hora a velha, que desde criança sempre se mostrou “mandona” e que gritava com todas as outras crianças, namorados, marido e filha, calou-se. E aquele grito foi tão imponente que fez a sogra de Zé sentir certo arrepio na nuca e ter partes esquecidas pelo tempo, levemente lubrificadas.
Joana parecia não acreditar naquilo, naquela cena de filme. Parecia não acreditar que seu príncipe arrebentara a porta e tinha um fusca do lado de fora à sua espera. Zé caminhou até a mulher, segurou suas mãos, olhou dentro dos olhos dela e disse: “Te amo mulher! Pega tuas malas, vamo comigo!”
Joana levantou-se da mesa e foi logo pegar as coisas dela, enquanto a mãe, recobrando o juízo, ou a falta dele, danou a berrar como louca! Tanto Zé como Joana ignoravam as ataques malvados da velha, que carregava a panela de arroz e tentava convencer a filha de que era errado, que amor é coisa de filme.
Foram juntos até o carro, colocaram as roupas no banco de traz e entraram, ainda com os protestos da mãe. Zé perdeu ainda uns minutos tentando fazer seu carro pegar e a sogra nesse tempo perdia a voz, já rouca. Saíram cantando pneu e deixando uma nuvem de óleo queimado na cara da sogra, que ainda berrava do portão.
Se foram felizes para sempre, não sei. Se foram felizes até onde o carro de Zé agüentou, também não sei. Se tiveram filhos não sei. Não sei de mais nada. Eu fiquei aqui, antes da curva, e vi o carro de Zé sumir entre a fumaça.