domingo, 29 de abril de 2012

Bestas, bichos e monstros


A besta vinha num passo lento
Tinha o rosto fino
E parecia ter mil anos
Soltava fumaça pela boca e pelo nariz.
Trazia no colo seu bicho
De pelo claro
Cara amassada
Unhas cortadas
Laço na cabeça
Coleira prateada.
A besta não ousava carrega-lo pelo pescoço
Temia que suas patas tocassem o cimento.
Entraram então, em grande salão
De bela almofada,de mesa adornada.
No cimento, do lado de fora
Um outro bicho observava pela janela
Tinha a cara peluda
Faltavam-lhe os dentes
Tinha unhas grandes
Estava quase nu.
O bicho do lado de fora, nem sempre foi bicho
Adquiriu tal título ao perder o juizo
Passou a andar de quatro
Carregava dentro de si, um monstro
Responsável por seu tormento
Quando lá dentro foi servido ao bicho
Arroz, aveia e cordeiro
A besta entre dentes amerelos, riu...
O bicho frente ao banquete, latiu...
O bicho do lado de fora ao fitar, gruniu...
O monstro urrou.
Maltratou-lhe o estômago
Cuspiu ácido em sua barriga
Contorceu-se de dor
De fome.


*Na PetDelicia, restaurante para cães
os pratos variam entre R$6,00 e R$25,00

domingo, 15 de abril de 2012

Pedro e Marcelo (final)


Foi difícil voltar pra casa, foi difícil encarar o rádio de pilhas, a mesa de jantar, a caixa de ferramentas, as roupas no armário. Pedro se sentia como uma casca, algo oco, sem sentido. Deitava em sua cama e chorava por horas com a cabeça no travesseiro, apoiava-se na fragilidade da mãe, tão franzina e fraca como o próprio filho. Sentados no sofá da sala, acompanhados pelo “tic-tac” desesperado e angustiante do relógio.
Aos poucos, os ponteiros lentos do relógio da parede foram colocando as coisas no lugar: a casa abriu as janelas, o sol entrou de mansinho, ouviu-se o movimento na rua, tocou uma música boa no rádio. Cansado da janela e da TV, Pedro decidiu andar, só andar, não muito longe, andar pra chegar em lugar nenhum, andar! Saiu com passos lentos e inseguros, atravessou a rua e continuou andando, olhava sempre pra baixo. Mirou dedos vazando de uma sandália e colidiu em algo fofo, olhou pra cima e viu um enorme rosto rosado, ainda maior pela lente de seus óculos. A curiosidade de Berenice torturava o pequeno. Pedro nessa hora era uma dessas xícaras de café cheia até a borda, que você sabe que vai derramar enquanto leva a boca. E ele transbordou, lembrou do pai, de toda a dor, da saudade. Saiu correndo enquanto Berenice ainda perguntava todo tipo de coisa. Correu, correu até o campinho, queria sumir. Parou debaixo da jabuticabeira, abaixou a cabeça e colocou as mãos no joelho, tentava respirar e tentava não chorar, a asma só dava chance para uma coisa de cada vez e ele decidiu respirar. Engoliu o choro e encostou na árvore. Reconheceu os cabelos dourados de Marcelo sob o sol, no campinho, lá em baixo. Marcelo viu o amigo em pé em baixo da jabuticabeira. Os dois se observaram de longe por um tempo.
O céu estava colorido de pipas, lentamente a pipa de Marcelo pousava, enquanto ele enrolava a linha sem pressa. “Desculpem, mas eu preciso ir” disse sua pipa as outras, e desceu. Colocou pipa e carretel no chão e foi andando em direção ao amigo. Subiu o caminho de pedras sem pressa nenhuma, parou por um estante, olhou pro céu como se observasse as outras pipas, fez uma cara séria como se analisasse a competição, tapou o sol com a mão sobre a cabeça. Voltou então a subir o caminho até a jabuticabeira, agora olhava os próprios pés. Parou a certa distância do quatro-olhos e esboçou um sorriso, logo voltou atrás e fechou a boca subitamente! Imaginou que não era legal sorrir naquela hora. Abriu a boca e tentou dizer algo, fechou. Abriu a boca e fechou novamente, não sabia o que dizer. Pedro apenas olhava. Marcelo coçou a cabeça, tinha a boca contorcida. Então, se aproximou de Pedro, olhou através dos óculos, olhou bem nos olhos do pequeno, tinha um rosto sereno nessa hora. Marcelo enrolou os braços em volta do amigo de uma maneira desajeitada, bruta, era a primeira vez, em 11 anos que ele abraçava alguém. Abraçou forte, quase sufocou o pequeno. Marcelo abraçava ali a Pedro, abraçava a mãe que perdeu ainda bebê, abraçava o pai que nunca conheceu. Pedro foi forte e pela primeira vez na vida conseguiu administrar o choro, a asma e um abraço sufocante. Marcelo voltou os braços pra junto do corpo, sentia-se envergonhado e aliviado “é bom abraçar” pensou. Deu um tapa no ombro de Pedro e disse: “É muito viado mesmo”. Pedro riu.

domingo, 8 de abril de 2012

Pedro e Marcelo (parte 3)


Fez o caminho de volta pra casa mais rápido do que o habitual e pisava em poças, naquela segunda-feira que amanheceu chuvosa, de tempo fechado e dentes cerrados. “O que houve com aquele quatro-olhos” perguntava-se Marcelo. Em frente ao portão do pequeno, pode perceber que a casa não havia acordado para o novo dia, tinha janelas e portas fechadas, como olhos que dormem demais e boca que guarda algum segredo. Peregrinou durante os dois dias seguintes em frente a casa, que assim como o tempo, permanecia fechada. Finalmente, na quinta, enquanto Marcelo esperava em frente ao portão do amigo, pés que vazavam de uma sandália vieram em sua direção. Ela tinha a cara gorda e rosada, cabelos embaraçados numa mistura de tinturas, vestia um vestido florido que mais parecia uma imensa cortina e quando Marcelo a encarou, percebeu que o rosto daquela mulher ocupava todo o seu campo de visão. Dona Berenice fez um longo interrogatório, perguntou o que ele fazia ali, desconfiou. Logo depois, desarmada pelo olhar triste e sereno de Marcelo, Berenice franziu a testa e torceu a boca, disse então em tom ameno:
“-Pedro não volta tão cedo, foi pra casa de uma tia no centro, seu pai esta muito mal no hospital, teve um mal súbito o pobre homem. Culpa dos excessos com o cigarro! Nunca fume meu filho, nunca fume!”
Marcelo se perguntava o que “excesso” e “mal súbito” queriam realmente dizer, mas pode constatar pela dificuldade das palavras, de que se tratava de algo sério. Foi pra casa.
Pedro tinha no pai, o maior de seus heróis. Gostava de deitar do lado dele toda noite após o jantar para ouvir rádio. Ouviam o noticiário noturno e debatiam as noticias, ouviam também o programa de humor e riam alto das mesmas piadas requentadas. Por vezes eram repreendidos pela mãe, que tentava assistir na sala a sua novela, isso tornava ainda mais divertido aquela bagunça toda. Pedro corria na caixa de ferramentas e buscava o alicate, depois, voltava correndo atrás de um fusível, era um ajudante exemplar de seu pai, que consertava todo tipo de coisa. As vezes procurava na caixa por ferramentas de nomes complicados e estranhos, ria sozinho ao descobrir, depois de um tempo considerável, que elas não existiam. Ria ainda mais ao ouvir as gargalhadas do pai, que sempre pregava peças assim nele. Eram amigos, grandes amigos.
Na casa da tia, o pequeno vivia na janela observando os carros. Tentava tirar da cabeça tudo o que aconteceu no domingo a noite, quando viu que o herói da casa clamava por ar e apertava o peito com as duas mãos, tinha nos olhos uma expressão grave. A mãe passava a noite no hospital e quando estava em casa, tentava amenizar a situação, dizia que ia ficar tudo bem e que logo tudo voltaria ao normal. Numa tarde, a mãe de pedro não apareceu na casa da irmã. O pequeno estava na janela quando a tia atendeu o telefone, enclinou a cabeça pra ver se conseguia ouvir algo . Ouviu só o silêncio, o silêncio mais desesperador que se pode ouvir, não conseguia nem mais ouvir os carros lá fora, pensou ter perdido a audição. Tinha o coração pequeno nessa hora e a cada passo que a tia dava em sua direção, sentia o coração diminuir ainda mais. Soube então que a partir daquele dia, nada seria como antes e que nada voltaria ao normal...

(continua)