segunda-feira, 29 de julho de 2013

Gato


           


Sentado na porta do quarto, com um olhar de desdém, analisava os convites da dona:
-Vem, deita aqui, ta um frio! Você não quer deitar aqui? Vem... Vem cá.
Permanecia imóvel, olhando lugar nenhum. Os convites ainda ecoavam pelo quarto pouco iluminado. Um abajur sobre a mesinha deixava tudo muito agradável, algumas almofadas caídas pelo chão, cobertor e edredom tornavam aquele, o quarto mais atrativo de toda vizinhança. Mas ele não cedeu às tentações, virou-se lentamente e saiu balançando o rabo, num andar descompromissado. Passou pela sala, adentrou a cozinha e cogitou um pouco de ração, talvez água... Não. Pulou basculante e equilibrou-se na cerca de ferro, invadiu o telhado do vizinho e foi até a rua. O caminhão vinha longe ainda, dava pra atravessar, a preguiça e precaução o fizeram esperar. O muro a sua frente era bem alto, gatos mais jovens e em melhor forma galgariam o topo sem maiores dificuldades; ele abaixou a cabeça e levantou o traseiro, rebolou graciosamente, mordeu o canto da boca e saltou, ainda era bom naquilo. A lua veio e foi embora, a luz do poste acendeu e apagou, atrás do muro se ouviam miados altos e amenos, folhas balançando e alguns outros barulhos não identificáveis por ouvidos humanos. Atrás do muro,“Sodoma e Gomorra” dos gatos.
Era inicio do dia quando ele apareceu em cima do muro novamente, tinha umas folhas agarradas na cabeça e o pelo molhado pelo sereno. Parecia irremediavelmente feliz. Fez o caminho de volta sem pressa nenhuma. Adentrou a casa pelo mesmo basculante por onde saíra, fez um barulhão. Passou pela cozinha e dessa vez não ignorou a ração e a água, arrematou ambos. Fez passos cambaleantes e tortos até o quarto, viu que o abajur ainda estava acesso, mas a luz calma que transpassava a fina cortina deixava o quarto mais iluminado que antes. Forçou a cabeça na porta e entrou. Tropeçou num sapato meio largo, de formato rude e grave, não combinava com as cores do quarto. Passou por cima de uma calça e prendeu a pata de trás num cinto não totalmente afivelado; só então, percebeu que a rotina do quarto tinha sido quebrada. Analisou todo o cenário com um olhar investigador e no final da tomada panorâmica os olhinhos verdes eram assustados e mal humorados. Tratou logo de pular na cama e viu dois volumes embrulhados no cobertor, escalou o maior. Foi pisando forte sobre o corpo ainda não apresentado formalmente, “ta no meu lado da cama”-pensou. Quando a cabeça de outro bicho, de barba e cara cretina apareceu sonolenta, o gato brigou feio: “Que porra é essa aqui?”-exclamou.