Sentado na porta do quarto, com um olhar de desdém,
analisava os convites da dona:
-Vem, deita aqui, ta um frio! Você não quer deitar aqui?
Vem... Vem cá.
Permanecia imóvel, olhando lugar nenhum. Os convites ainda
ecoavam pelo quarto pouco iluminado. Um abajur sobre a mesinha deixava tudo
muito agradável, algumas almofadas caídas pelo chão, cobertor e edredom
tornavam aquele, o quarto mais atrativo de toda vizinhança. Mas ele não cedeu às
tentações, virou-se lentamente e saiu balançando o rabo, num andar
descompromissado. Passou pela sala, adentrou a cozinha e cogitou um pouco de
ração, talvez água... Não. Pulou basculante e equilibrou-se na cerca de ferro, invadiu o telhado do vizinho e foi até a rua. O caminhão vinha longe ainda, dava pra atravessar, a preguiça e precaução
o fizeram esperar. O muro a sua frente era bem alto, gatos mais jovens e em
melhor forma galgariam o topo sem maiores dificuldades; ele abaixou a cabeça e
levantou o traseiro, rebolou graciosamente, mordeu o canto da boca e saltou,
ainda era bom naquilo. A lua veio e foi embora, a luz do poste acendeu e
apagou, atrás do muro se ouviam miados altos e amenos, folhas balançando e
alguns outros barulhos não identificáveis por ouvidos humanos. Atrás do muro,“Sodoma e Gomorra” dos gatos.
Era inicio do dia quando ele apareceu em cima do muro
novamente, tinha umas folhas agarradas na cabeça e o pelo molhado pelo sereno.
Parecia irremediavelmente feliz. Fez o caminho de volta sem pressa nenhuma.
Adentrou a casa pelo mesmo basculante por onde saíra, fez um barulhão. Passou
pela cozinha e dessa vez não ignorou a ração e a água, arrematou ambos. Fez
passos cambaleantes e tortos até o quarto, viu que o abajur ainda estava
acesso, mas a luz calma que transpassava a fina cortina deixava o quarto mais
iluminado que antes. Forçou a cabeça na porta e entrou. Tropeçou num sapato
meio largo, de formato rude e grave, não combinava com as cores do quarto. Passou
por cima de uma calça e prendeu a pata de trás num cinto não totalmente afivelado; só então, percebeu que a rotina do quarto tinha sido quebrada.
Analisou todo o cenário com um olhar investigador e no final da tomada panorâmica
os olhinhos verdes eram assustados e mal humorados. Tratou logo de pular na
cama e viu dois volumes embrulhados no cobertor, escalou o maior. Foi pisando
forte sobre o corpo ainda não apresentado formalmente, “ta no meu lado da cama”-pensou.
Quando a cabeça de outro bicho, de barba e cara cretina apareceu sonolenta, o
gato brigou feio: “Que porra é essa aqui?”-exclamou.