quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Progresso

A fábrica virou igreja
A mercearia virou igreja
A farmácia ainda é farmácia
Mas o cinema também virou igreja..
Ai Deus! Queria eu, que uma vez só...
A igreja virasse boteco.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Andar

Quando eu ando por ai, meus sapatos velhos e cansados
devoram pedaços inteiros de asfalto
O estômago ronca um vazio que vem da alma
E a cabeça rumina antigas saudades.
Queria eu que junto com as solas desses sapatos
Ficasse pela rua, como um rastro, essa velha solidão
Andar, andar sem olhar pra trás
Sentir as penas dormentes e não a cabeça pender pro lado, ou pra baixo
mirando esses sapatos gastos
Pois a cabeça pesa como bigorna de desenho preto e branco
Acorda pesada, quando por milagre...dorme.
"Não para agora não" eu digo
"Só mais um quarteirão"
Tento despistar por ruas emaranhadas essa culpa
Mas ela, esperta, sempre me encontra num beco sem saida
Esperta como um cão!
E pra que andar?
Não existem mais cataventos por ai
Toda essa procura é em vão.
Esse andar é uma necessidade
É também enganação.

Sonho

Era tudo antigo naquela padaria. O letreiro com o nome do estabelecimento era patrocinado por um refrigerante extinto a décadas. A balança ainda era daquelas em que se puxava um pesinho prum lado, pro outro, só um toque, Pronto!
duzentos gramas de mortadela de frango. Antigo também era o seu dono, sempre mal-humorado, cigarro na boca e caderno de esportes na mão.
Quando o guri venceu o medo do sujeito mal encarado no caixa, que ficava logo na entrada da padaria, correu para os fundos, onde um balcão de frios e doces se escondia. Atrás do balcão uma menininha também, forçada pela vida a ser mulher antes de brincar de casinha. Ela limpava um cortador de frios, cego e empoeirado. Na ponta dos pés o garoto perguntou então a atendente:
-Oi,você tem sonho?
Então, lentamente a menina parou o trabalho, olhou com um olhar pesado e triste os olhinhos e as mãos que se apoiavam com dificuldade no balcão e respondeu:
-Eu acordo as cinco, me arrumo, esquento o café, acordo a menina, visto ela, saio com pressa pra não perder o ônibus, deixo a menina na creche, venho andando até aqui. Trabalho até as duas, saio,engulo qualquer coisa, dou um jeito na casa e pego umas costuras pra fazer, ainda busco a menina na creche, então tenho que fazer comida, arrumar a marmita pro marido...mal vejo a novela e durmo! Não menininho, eu não tenho mais sonhos não.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Na fazenda

Achei que era só no vale do silício que ocorriam as disputas.
Achei que apenas debaixo das sombras dos arranha-ceús que se mastigava um ao outro
Entre um cachorro-quente e um café.
Achei que só se falava da vida alheia em salões de beleza e porta de boteco
Achei que na cidade grande, gente pequena falava de pessoas miúdas!
Falar, mastigar, cuspir, achar, imaginar, indagar, fofocar...
Cansado de dentinhos podres mastigando fofocas em linguas verdes de sujeira e bafos de milênios de maldades
Uma semana na fazenda
Uma cura pra essa dor nas costas, um descanso para os olhos
Longe das noticias, das janelas, dos "pop ups"!
Ledo engano o meu...Assim como na cidade, o campo carrega suas intrigas
O pangaré solitário reclama da vida,chora e diz que vai embora
A vaquinha, deixa seus bezerrinhos famintos enquanto pasta por ai, procurando noticias quentes
Shiiii! A parede do celeiro tem ouvidos!
Evite ser visto com as galinhas
Passe longe do lago, tem piranha lá...
E o boi muge, bezerro berra, bode bodeja, cão late, ovelha berrega, pato grasna,
cuco cuca, burro zorna, grilo grizalha, sapo coaxa...
Tanto lá, quanto aqui:
"Já soube?"
"Wrebet"
"Tu viu?"
"Cocóricoooooo"
"Então, não tenho certeza, mas.."
"Muuuuuuuuuuuuuuuuuuu"
"Ta vendo aquela lá?"
"Quém,quém,quém!".