quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Sai dessa igreja menino...vai pro bar (revisitado)



Andamos reto sobre calçadas tortas
Sapatos devoram pedaços inteiros de asfalto
Há pressa em chegar
Enquanto a cidade dorme um sono tranquilo
Velhos e suas pantufas
Livros de auto-ajuda, chá.
O rádio prega a mensagem
Um copo d'água ouve atenciosamente.
Esse roxo era um blues, evoluiu
Cada um traz sua própria gaita
Enquanto a filosofia (de buteco)
Vem acompanhada de batata.
O afeto na bar, margeia o teto
Transborda o copo
E o blues ameniza, quase passa
O blues, é agora, azul claro, manso.
Na volta, os sapatos não tem pressa
a cabeça, ja não pesa
Andamos torto sobre calçadas retas.


*Na foto, Tim Maia na infância (obvio), em curso para coroinha.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Shopping


Esqueça a criança no carro
Num estacionamento lotado.
A melhor foto ganha
A melhor frase ganha
O manequim me encara
Eu pareço mal arrumado
Fora de moda.
Molecada
Correria
Berro e meleca
Fraldário
A funcionária possui sorriso estático
Mas queria ter um machado
O nome no crachá é comum
O uniforme é borrado.
Pipoca e creolina
Cinema
Filme dublado
Ninguém fala a mesma língua
Você paga inteira
O anão paga meia
E o bebê metade de meia.
Testosterona
Boné aba reta
Cabelos hermeticamente desarrumados
Pescoço duro
Tênis solado alto
Emborrachado.
Loiras de andar afetado
Sorriso metálico
Rebolado magro
Desajeitado
Loiras...
Morenas querendo ser loiras
Ruivas querendo ser loiras
Mulatas querendo ser loiras
Poodles
Meninos e velhos...
Querendo ser loiras.
Último dia!
Última hora!
Últimos instantes!
Corra!
Passe por cima de qualquer coisa!
Últimos segundos da promoção!
Na compra de produto chinês superfaturado
Grátis...
Retrato de Jesus autografado.

sábado, 3 de novembro de 2012

Carta ao Suicida



Deixe essa ideia martelar na tua cabeça
Essas vozes
Tua conciência
As buzinas

Tuas pernas cansadas
Descanse
Teu olhar fundo
Mergulhe

Subir escadas é subir na vida
Pular dai
O fim dela
De tudo

Ponteiros e pontadas
Filas e números
Dor nas costas
Chaga, na alma

O trânsito tem pressa
As pessoas na passarela
Precisam chegar em casa
Assistir a novela

Sapatos estacionados
Um pescoço esticado
E uma conclusão:
"Ah, mais um?"

Você não precisa de conselho
Dinheiro ou perdão
É que... passou, como um vento frio
Um vazio, e é hora de misturar-se ao chão

Ser noticia de meio minuto na televisão
Conversa de botequim
Entre cachaça, média e mordida de pão.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Poesia Ruim



Acordado! Assustado...
O latido incessante
Denuncia a falta de ração no pote
Acordado... juntando os pedaços

Na memória, ainda, algum desejo de morte
Na testa o corte
Na vida, a falta de sorte

Na boca, ainda, o gosto de fel
De Martini (batido, não misturado)
Cachaça com conhaque e mel

Deitado, ainda, de sapatos
Em mãos trêmulas na noite anterior
Atestado o registro de uma dor

Em caligrafia precária
Em garranchos
Minha agonia em papel

A dor, digna de Chico, Cartola ou Noel
O escrito em rimas primárias
Música no próximo disco de Victor & Leo.

domingo, 30 de setembro de 2012

Fragmentos


Fragmentos espalhados
Por todo canto do quarto
Frases e letras escorrendo
Vazando do peito

Metades de escritos
Quase frases
Meia coragem
Afeto inteiro

Metralho folhas de papel
De maneira tão intensa
Que pontos e vírgulas
Não entem a razão de existir

São escritos frustrados
Por não conseguirem dimensionar
O sentido das coisas
Do sentir

Talvez eu devesse gritar...

Textos abandonados
Que se agrupados
Se alinhadas, palavras por palavras
Ia se até a lua
Voltava.

Poemas sem pé, nem cabeça
Ou braço
Por dó, algumas vezes
Os entrelaço

E se não entendes
Como algo começa de um modo
E termina de outro
Pouco sabes da vida

Não existe razão em nada...

O coração só bombeia
Entope...
As pernas, bambeiam
Galope...
O cérebro, balbuciar de terminações nervosas
Esquizóide...

De onde vem então?
O que tira o chão
Aperta peito e coração
"Coração", coisa brega!

De onde vem o que me faz perder?
Perder a direção
Explico:
Vem de algum orgão sem explicação

Provavelmente do baço
Pra que serve o baço?
Ora, pra guardar a paixão!
"Paixão", palavra brega!

Ja ouvi caso
De perda de amor
Junto com o baço
O meu, anda inchado!

sábado, 22 de setembro de 2012

Passarela




Subo os degrais..
Subo os degrau?
Subo os degraus...
Subo as escadas da passarela

Bela rotina essa
Passarela
Passa ela
Por mim

Entre placas
Buzinas
Entre Rio
Itaipava

Na reta
Sentidos opostos
Olhares se cruzam
Breve momento

Motores roncam
Abaixo de nossos pés
Há sono ate ela
Há sonho até ela

O sol da manhã
Em seu cabelo dourado
Vento no pano do vestido
Fones de ouvido

Corre o dia
Acelera o peito
Segura o passo
Solta o corrimão

Depois dela
Passarela
Minha visão
Só aço frio e retorcido.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

"Entre aspas"


Começa com "amizade"
Geralmente termina na "saudade"
A questão é:
"Sempre te amei de verdade".

Se existem rimas prontas
Afeto pré fabricado
Porque logo eu
Me darei tal trabalho?

É clichê, é piegas
Cafona
Mas diz ai, "Honey baby"
Funciona!

Nosso amor é tão verdadeiro
Quanto nossa imagem no espelho
Blush, lápis de olho, creme de pentear
Suplemento alimentar

Nosso "amor" é assim...
"Entre aspas"
Tudo que me diz, ja ouvi antes
Trechos de coisas
Outras pessoas.

Se os poetas
Verdadeiros amantes
Soubessem que maculamos seus versos
Em coisa tão banal quanto, nós
Nunca escreveriam tais linhas.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Morreu Jovem



Morreu jovem
Pouco tinha visto da vida
Assassinada cruelmente
Jogada numa esquina pouco movimentada.

Morta em vão
Nada no mundo mudou depois que seu pescoço foi cortado
Nenhum casamento desfeito
Nenhum cargo ocupado
Nenhum amor conquistado
Nenhum carnê liquidado.

Morreu em vão
Não teve a dignidade de alimentar a família na mesa de domingo
Nem, a bela sensação de esquentar a casca de sua prole
De vê-la saindo do ovo com aquela carinha feia de quem come minhocas.

Morreu, sem ter escapado pra rua
Ou andado de caminhão
Como muita gente, morreu por culpa de religião
Não porque se opunha a alguma
Morreu, porque alguém inventou
Que santo como galinha com farofa
No além.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Claque



Cada gota de chuva
Uma pedrada na alma
Gotejando
Esperando.

A calma vem num andar aleijado
Cruza a esquina
Passos de lesma
A calma vem em doses homeopáticas.

Ponteiros de chumbo no teu relógio
Barro na ampulheta
Chuva lá fora
Tudo bem...

Teu estômago ronca
Mas é a alma que sente fome

É hora de sair pra comer
Se alimentar
Caçar...

Voltar pra casa
Cuspindo ossos
Vomitando dentes
Bocas.

Esse filme eu ja vi
Esse episódio é piloto
O piloto sumiu!
Sem rumo...

Mas a "claque" é fiel
Nunca omissa
Admiram tua beleza
Como devotos em missa

Choram do teu choro
E riem a cada tropeço teu
Sempre que a placa levanta.
(Risos)

A vida é mesmo uma tragédia anunciada
Cenas de um próximo capítulo que nunca chega
Fim de temporada
Gosto amargo
Deja vu.

Eu, gosto de te encontrar por ai
Dividir humor de banheiro
Sarcasmo
Torpor
Bulas de remédio.

domingo, 27 de maio de 2012

Vazio é prato cheio


Bato na mesa, com a certeza de quem mente
Deixo escapar uma mágoa pelo canto da boca
Um chiado baixo
No lado onde me falta um dente.

Péssimo ator esse na minha frente
Finge tão mal uma preocupação:
"Que lhe maltrata o coração?"
"Nada sério, que atormente"
"Conta, porque anda descrente?"
"Não é nada, juro. É esse tempo louco, ontem frio, hoje tão quente".

Alguém encheu o copo
Alguém entortou o corpo
A fumaça encheu o olhar
Eu me enchi de vazio
E o vazio encheu o lugar

Riem tanto que uma hora a risada fica gasta
E todo riso se cala, perde a graça
Tudo superficial
Tão superficial
Como essa mosca na cachaça
A moça nua no jornal.

Súbito arrepio pela nuca
A culpa, a desgraça
algo que amordaça
Silencia tudo, fica frio...
Porém, quebrado o silêncio, tudo passa
Ouvi gritos e berros
Alguém apanhou feio
"Tinha carta na manga e ai é trapaça!"

Estrangulo o riso
A moça me olha desconfiada
"Nunca reparei muito na sua cara, ela é assim, meio torta"
Faz cara (ainda torta) de quem pouco se importa...

É minha hora, é hora morta
O dono ja se mantém de pé pela porta
Uma última olhada no espelho vomitado do banheiro
Não me falta nenhum pedaço, sou um lixo, mas inteiro
Um último galanteio:
"Boa noite senhoras, boa noite cavalheiros".

Procuro meu chapéu e descubro então, que nunca tive um.
Uma olhada pro céu
Outra pro chão e então, uma oração:
"Nossa senhora dos bêbados
Que eu tenha um sono macio e justo
Na minha cama de tijolos".

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Memórias de um vampiro


Dentes afiados num sorriso amarelo
Cabelo penteado pra trás
Capa, roupa preta e pesada
Longe de alho,estaca e martelo

É certo que carrego em minhas costas alguns séculos
Ja escalei paredes de donzelas
Tomei vinho caro
Ja fui brisa, mora?
Ventania!
Maremoto!
Ja fui cão
Ja mordi e me deixei morder na mesma proporção

Aproveitei bem a adolescência
Minha e de muitos
Frequentei a "high-society"
Só entrava onde era convidado
É certo também que fui expulso com alho
Água benta de namorados ciumentos

Eu ja fui! E isso, ja foi...
Hoje, minha roupa é motivos de piada
Meus sapatos
Minha capa
Torrei toda a fortuna dos Vlads
Em jogatinas e quebra de bolsas
Trocas de moedas e inflação
Precisei vender toda a minha coleção dos Beatles
O melhor do verão romeno 67

Hoje, ouço Cleopatra Stratan
E moro de favor na casa de um tataraneto de igor
Trabalho numa fábrica
Sou assalariado e bebo vinho barato
Carrego um morcego dentro da carteira
Não condeno mais ninguém a vida eterna
Desanimei
E a única coisa que transmito é herpes
Não vejo a hora da eternidade passar.

domingo, 29 de abril de 2012

Bestas, bichos e monstros


A besta vinha num passo lento
Tinha o rosto fino
E parecia ter mil anos
Soltava fumaça pela boca e pelo nariz.
Trazia no colo seu bicho
De pelo claro
Cara amassada
Unhas cortadas
Laço na cabeça
Coleira prateada.
A besta não ousava carrega-lo pelo pescoço
Temia que suas patas tocassem o cimento.
Entraram então, em grande salão
De bela almofada,de mesa adornada.
No cimento, do lado de fora
Um outro bicho observava pela janela
Tinha a cara peluda
Faltavam-lhe os dentes
Tinha unhas grandes
Estava quase nu.
O bicho do lado de fora, nem sempre foi bicho
Adquiriu tal título ao perder o juizo
Passou a andar de quatro
Carregava dentro de si, um monstro
Responsável por seu tormento
Quando lá dentro foi servido ao bicho
Arroz, aveia e cordeiro
A besta entre dentes amerelos, riu...
O bicho frente ao banquete, latiu...
O bicho do lado de fora ao fitar, gruniu...
O monstro urrou.
Maltratou-lhe o estômago
Cuspiu ácido em sua barriga
Contorceu-se de dor
De fome.


*Na PetDelicia, restaurante para cães
os pratos variam entre R$6,00 e R$25,00

domingo, 15 de abril de 2012

Pedro e Marcelo (final)


Foi difícil voltar pra casa, foi difícil encarar o rádio de pilhas, a mesa de jantar, a caixa de ferramentas, as roupas no armário. Pedro se sentia como uma casca, algo oco, sem sentido. Deitava em sua cama e chorava por horas com a cabeça no travesseiro, apoiava-se na fragilidade da mãe, tão franzina e fraca como o próprio filho. Sentados no sofá da sala, acompanhados pelo “tic-tac” desesperado e angustiante do relógio.
Aos poucos, os ponteiros lentos do relógio da parede foram colocando as coisas no lugar: a casa abriu as janelas, o sol entrou de mansinho, ouviu-se o movimento na rua, tocou uma música boa no rádio. Cansado da janela e da TV, Pedro decidiu andar, só andar, não muito longe, andar pra chegar em lugar nenhum, andar! Saiu com passos lentos e inseguros, atravessou a rua e continuou andando, olhava sempre pra baixo. Mirou dedos vazando de uma sandália e colidiu em algo fofo, olhou pra cima e viu um enorme rosto rosado, ainda maior pela lente de seus óculos. A curiosidade de Berenice torturava o pequeno. Pedro nessa hora era uma dessas xícaras de café cheia até a borda, que você sabe que vai derramar enquanto leva a boca. E ele transbordou, lembrou do pai, de toda a dor, da saudade. Saiu correndo enquanto Berenice ainda perguntava todo tipo de coisa. Correu, correu até o campinho, queria sumir. Parou debaixo da jabuticabeira, abaixou a cabeça e colocou as mãos no joelho, tentava respirar e tentava não chorar, a asma só dava chance para uma coisa de cada vez e ele decidiu respirar. Engoliu o choro e encostou na árvore. Reconheceu os cabelos dourados de Marcelo sob o sol, no campinho, lá em baixo. Marcelo viu o amigo em pé em baixo da jabuticabeira. Os dois se observaram de longe por um tempo.
O céu estava colorido de pipas, lentamente a pipa de Marcelo pousava, enquanto ele enrolava a linha sem pressa. “Desculpem, mas eu preciso ir” disse sua pipa as outras, e desceu. Colocou pipa e carretel no chão e foi andando em direção ao amigo. Subiu o caminho de pedras sem pressa nenhuma, parou por um estante, olhou pro céu como se observasse as outras pipas, fez uma cara séria como se analisasse a competição, tapou o sol com a mão sobre a cabeça. Voltou então a subir o caminho até a jabuticabeira, agora olhava os próprios pés. Parou a certa distância do quatro-olhos e esboçou um sorriso, logo voltou atrás e fechou a boca subitamente! Imaginou que não era legal sorrir naquela hora. Abriu a boca e tentou dizer algo, fechou. Abriu a boca e fechou novamente, não sabia o que dizer. Pedro apenas olhava. Marcelo coçou a cabeça, tinha a boca contorcida. Então, se aproximou de Pedro, olhou através dos óculos, olhou bem nos olhos do pequeno, tinha um rosto sereno nessa hora. Marcelo enrolou os braços em volta do amigo de uma maneira desajeitada, bruta, era a primeira vez, em 11 anos que ele abraçava alguém. Abraçou forte, quase sufocou o pequeno. Marcelo abraçava ali a Pedro, abraçava a mãe que perdeu ainda bebê, abraçava o pai que nunca conheceu. Pedro foi forte e pela primeira vez na vida conseguiu administrar o choro, a asma e um abraço sufocante. Marcelo voltou os braços pra junto do corpo, sentia-se envergonhado e aliviado “é bom abraçar” pensou. Deu um tapa no ombro de Pedro e disse: “É muito viado mesmo”. Pedro riu.

domingo, 8 de abril de 2012

Pedro e Marcelo (parte 3)


Fez o caminho de volta pra casa mais rápido do que o habitual e pisava em poças, naquela segunda-feira que amanheceu chuvosa, de tempo fechado e dentes cerrados. “O que houve com aquele quatro-olhos” perguntava-se Marcelo. Em frente ao portão do pequeno, pode perceber que a casa não havia acordado para o novo dia, tinha janelas e portas fechadas, como olhos que dormem demais e boca que guarda algum segredo. Peregrinou durante os dois dias seguintes em frente a casa, que assim como o tempo, permanecia fechada. Finalmente, na quinta, enquanto Marcelo esperava em frente ao portão do amigo, pés que vazavam de uma sandália vieram em sua direção. Ela tinha a cara gorda e rosada, cabelos embaraçados numa mistura de tinturas, vestia um vestido florido que mais parecia uma imensa cortina e quando Marcelo a encarou, percebeu que o rosto daquela mulher ocupava todo o seu campo de visão. Dona Berenice fez um longo interrogatório, perguntou o que ele fazia ali, desconfiou. Logo depois, desarmada pelo olhar triste e sereno de Marcelo, Berenice franziu a testa e torceu a boca, disse então em tom ameno:
“-Pedro não volta tão cedo, foi pra casa de uma tia no centro, seu pai esta muito mal no hospital, teve um mal súbito o pobre homem. Culpa dos excessos com o cigarro! Nunca fume meu filho, nunca fume!”
Marcelo se perguntava o que “excesso” e “mal súbito” queriam realmente dizer, mas pode constatar pela dificuldade das palavras, de que se tratava de algo sério. Foi pra casa.
Pedro tinha no pai, o maior de seus heróis. Gostava de deitar do lado dele toda noite após o jantar para ouvir rádio. Ouviam o noticiário noturno e debatiam as noticias, ouviam também o programa de humor e riam alto das mesmas piadas requentadas. Por vezes eram repreendidos pela mãe, que tentava assistir na sala a sua novela, isso tornava ainda mais divertido aquela bagunça toda. Pedro corria na caixa de ferramentas e buscava o alicate, depois, voltava correndo atrás de um fusível, era um ajudante exemplar de seu pai, que consertava todo tipo de coisa. As vezes procurava na caixa por ferramentas de nomes complicados e estranhos, ria sozinho ao descobrir, depois de um tempo considerável, que elas não existiam. Ria ainda mais ao ouvir as gargalhadas do pai, que sempre pregava peças assim nele. Eram amigos, grandes amigos.
Na casa da tia, o pequeno vivia na janela observando os carros. Tentava tirar da cabeça tudo o que aconteceu no domingo a noite, quando viu que o herói da casa clamava por ar e apertava o peito com as duas mãos, tinha nos olhos uma expressão grave. A mãe passava a noite no hospital e quando estava em casa, tentava amenizar a situação, dizia que ia ficar tudo bem e que logo tudo voltaria ao normal. Numa tarde, a mãe de pedro não apareceu na casa da irmã. O pequeno estava na janela quando a tia atendeu o telefone, enclinou a cabeça pra ver se conseguia ouvir algo . Ouviu só o silêncio, o silêncio mais desesperador que se pode ouvir, não conseguia nem mais ouvir os carros lá fora, pensou ter perdido a audição. Tinha o coração pequeno nessa hora e a cada passo que a tia dava em sua direção, sentia o coração diminuir ainda mais. Soube então que a partir daquele dia, nada seria como antes e que nada voltaria ao normal...

(continua)

segunda-feira, 12 de março de 2012

Pedro e Marcelo - parte 2



Num domingo de sol, todas as crianças estavam na rua, podia-se ouvir os gritos e as gargalhadas, bicicletas disputavam corridas de poucos metros, pipas enchiam o céu azul de diferentes cores e o vendedor de picolé soava como um tenor, tentando sem sucesso impor a sua voz meio a gritaria. Nesse mesmo domingo, certa ansiedade dominava Marcelo, nesse dia ele iria almoçar na casa do novo amigo. Foi a primeira vez, no alto de seus 11 anos, em que era convidado para almoçar na casa de alguém, na verdade, era a primeira vez que ele era convidado pra qualquer coisa. Sempre ficava de fora das festas de aniversário, batizados, comemorações de qualquer tipo.
As onze horas, uma hora antes do combinado, era possivel ver Marcelo andando pela rua. Subiu e desceu, rodopiou o quarteirão, perguntava a toda hora que horas eram e contava a partir de então os minutos mentalmente. Usava uma calça de tamanho menor, seus sapatos eram visivelmente maiores e a sua camisa era a mesma de sempre.
Quando faltavam cinco minutos para uma hora, parou em frente ao portão de Pedro, era um portão de madeira velho, os muros eram baixos e a casa tinha duas janelas pra rua. Uma casa muito simpática e acolhedora, de cor amarela. Marcelo secou o suor da testa, limpou também as pequenas goticulas de suor que se formava sobre sua boca e soltou o ar numa baforada pesada, tentando aliviar a ansiedade. Foi chamado por pedro, num berro contido e atravessou o portão com passos largos.
Foi saudado pela mãe de pedro logo na porta e estranhou o sorriso que ela tinha no rosto, desconfiou, balançou a cabeça num comprimento rápido e entrou. A porta de entrada revelava uma sala simples, com um sofá vermelho, uma estante de madeira com alguns porta-retratos e uma TV. Viu alguns quadros do amigo na parede, os quadros em ordem crescente, mostravam Pedro desde bebê até a idade atual, pode concluir então, que o pequeno era esquisito desde que nasceu.
Na mesa, estava sentado o Pai de pedro, tinha um ar sereno e uma voz cansada, usava óculos e barba. Chamou Marcelo pelo nome e puxou com alguma dificuldade a cadeira para o convidado se sentar. O cheiro que vinha da cozinha era muito bom. Antes do almoço ser servido, conversaram sobre muitos assuntos: futebol, televisão, quadrinhos. Descobriram que os dois estudavam na mesma escola e que nunca se encontraram porque Pedro nunca ia na quadra e Marcelo nunca aparecia na sala de aula. Quando o almoço foi servido, Marcelo disfarçou bem a fome que tinha: comeu devagar, mastigou com a boca fechada e conteve a vontade de repetir, porém ficou evidente no seu olhar e foi percebido por todos a fome que ele tinha de uma mesa pra sentar, alguém pra conversar, pra chamar de "pai", de "mãe". Ele poderia facilmente abdicar de sua saúde perfeita e ganhar algumas alergias, para fazer parte daquela familia.
Na hora de ir embora, quando a noite começava a cobrir o bairro de negro, combinou com o amigo de encontra-lo na escola no dia seguinte, como duvidava que Pedro apareceria na quadra, Marcelo faria um esforço e iria até a sala de aula. Foi embora e no dia seguinte, quando olhou com um olhar desconfiado pra dentro da sala de aula, viu que Pedro não estava por lá.

(continua)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Pedro e Marcelo



Por detrás daqueles óculos fundo de garrafa estava Pedro, magro e portador de todo tipo de alergia que poderia caber no corpo de uma criança de 11 anos. Embora muito querido no bairro onde morava, desfrutava de pouca popularidade dentre os de sua faixa etária e era comum ver o pequeno Pedro perambulando sozinho, sempre carregando um carrinho ou um gibi nas mãos. Seu passatempo era sentar abaixo da sombra de uma jabuticabeira e ler os contos de seus heróis preferidos, essa árvore, por ser de fronte ao campinho, também lhe proporcionava bons momentos de risadas ao observar os jogos da molecada.
O “dono” do campinho era Marcelo, lá era sua morada, pois este nunca parava em casa. Marcelo tinha a mesma idade de Pedro, porém as similaridades paravam por ai: era odiado no bairro, garoto problema, vivia aprontando e de dez palavras ditas, sete eram palavrões. Era reconhecido ao longe, pois um short vermelho e uma camiseta surrada eram sempre suas vestimentas. Marcelo morava com a avó, sua mãe morreu antes mesmo de lhe dar um colo bom em fim de tarde e seu pai, esse ele nem conheceu.
Aquele menino sentado lá ao longe, debaixo da árvore sempre causou certo desconforto em Marcelo, que um dia, movido pela curiosidade, resolveu ir até lá. Subiu calmamente o caminho de pedras até a jabuticabeira e assobiava tranquilamente. O garoto sentado com um gibi nas mãos congelou e então Marcelo sentou-se ao seu lado, indagou o que era aquilo que ele lia e fez também um longo interrogatório com Pedro, que suava frio. No fim das contas, Marcelo, que tinha ido até lá para maltratar o pequeno estranho, sentiu pena do guri e resolveu “adotá-lo”. Desceram juntos o caminho de pedras em direção ao campinho e passaram no meio do campo, onde sem nenhum tipo de protesto o jogo parou e os jogadores observaram a estranha cena. O que fazia Marcelo ao lado daquele menino tão estranho? A bola continuou a rolar, mesmo que nem todos os participantes da partida estivessem de fato nela, a curiosidade ainda era maior do que qualquer toque de letra ou gol de bicicleta. Pedro parecia não acreditar naquilo e manteve-se cabisbaixo todo o momento. Sentaram-se no gramado (que só existia nas extremidades do campo) e conversaram até que o jogo acabasse, conversaram até a hora em que o dono da bola precisou ir fazer o dever de casa, conversaram até que a mãe de Pedro apareceu com ar desesperado à procura do filho, que nunca chegava em casa após as 19hs e já eram 19:15hs!
Nasceu então uma amizade sólida, que causou grande confusão e intrigas entre as beatas do bairro e o dono do armazém (várias vezes furtado em guloseimas por Marcelo).
Era comum ver Pedro e Marcelo embaixo da jabuticabeira, comum ouvir suas gargalhadas a metros de distancia. Marcelo tentou sem sucesso ensinar ao novo amigo a soltar pipa e a jogar bola, Pedro tentou também, sem sucesso, introduzir o amigo ao mundo da leitura. Divertiam-se com as histórias um do outro e embora Pedro nunca tivesse vivido de modo aventureiro, Marcelo ria de doer a barriga ao ouvir sobre o dia em que o pequeno havia ficado trancado no banheiro da escola, ou quando o magricela pegou por duas vezes seguidas o ônibus errado. Incapaz de fazer um elogio, talvez, por nunca ter recebido um, Marcelo terminava suas colocações sobre o amigo com um tradicional: “É muito viado mesmo!”.

(continua)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O dia em que Zé parou


Parou, Zé parou
No meio da calçada
Olhou pro longe
Pensou em voltar para o lugar nenhum
Ou continuar pra nenhum lugar.
Magro, sem documento, sem nome
"Zé" apenas
"Zé" para não ser chamado de "coisa" ou "treco"
"Zé", embora ninguém pronunciasse seu nome.
Deitou-se no meio do passeio público
Esticou-se devagar
Abriu os braços e tentou encarar o sol
Como se o desafiasse
Como se o chamasse para um duelo
Às duas da tarde.
O sol não teria muito problema ou dificuldade
Em torrar a pouca carne de Zé
De evaporar o pouco de líquido e alma presente no mirrado corpo
E assim o fez...
Não se sabe, se Zé morreu de desidratação
Ou morreu antes, de desgosto, por vontade própria.
Esticado...
No meio do passeio público
Olhos fundos, seu corpo parecia uma folha seca, contorcido
Dedos ristes, boca aberta
Nada que fizesse o mundo parar
Ou o trânsito, sapatos e cachorros.
Ninguém se deu conta de que ele estava meio da calçada
Passos apressados passavam por seu corpo inerte
Pequenos passos em pequeninas pernas
Pé direito por cima do corpo de Zé
Pe esquerdo por cima da magreza de Zé
E até uma criança havia passado por ali.
Quando noite, foi empilhado junto ao lixo das lojas
Levado pelo caminhão
Jogado no aterro sanitário.
No outro dia, em sua volta foram catadas todas as latinhas
Restos de papel e papelão
Ele, continuou lá
Evaporando aos poucos
Sumindo, sumindo...
Até que sumiu por completo
E sua alma inexistente contemplou finalmente o nada.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Francie Brady


Tem olhos tristes
Tem um olhar perdido
Apara a cabeça tristonha sobre mãos cansadas
Numa janela de vidros sujos observa o lago
Veste uma camisa azul desbotada
Uma bermuda de pano rasgada
Meias e sapatos velhos
Tem um peixinho dourado numa sacola
Tem uma vitrola
Tem muita saudade
Tem fome também
Tem olhos tristes
Tem um olhar perdido
Apara a cabeça tristonha sobre mãos cansadas

domingo, 8 de janeiro de 2012

Caixas cheias em quarto vazio


Inverno
Ecos no quarto
Um domingo vazio
Pés singelos, passo torto
Vivência de um morto
A sua tristeza, disco duplo
De Adriana Calcanhoto
Possui na mão direita
A destreza de um canhoto
Olhos marejados
Atrás de óculos embaçados
Falta, do peso de um abraço
Afastado
Pelo peso da própra consciência
Caixas cheias em quarto vazio
Uma flor morta na sala
Objetos desesperados dentro de uma mala
Rosto hidratado
Soro de lágrimas
Comprimido de diferente cor
Algo que amenize saudade e dor.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Pausa para os comerciais



Hoje os porcos usam chapéu e uniforme
Caminham em fila com o espaço de uma pata pro animal da frente
As crianças consomem lavagem até alta madrugada
Lixo televisivo, seriado e feijão enlatado
Containers de lixo hospitalar importado.
A minha doença é melhor que a sua
A minha doença é made in USA
Pontas de agulhas da melhor qualidade.
Cidades se juntam numa relação promiscua
Nascem as megalópoles
Morrem os que sentem frio
Arranha-céus, prédios tão altos, que se leva um dia inteiro
Pra satisfazer o desejo do suicida, tamanha a queda.
Espaço garantido para novos poetas
E suas velhas mezelas
Vã filosofia do "subnick"
Emolduradas em janelas verdes, amarelas...
Fotos preparadas com cuidado
Baton vermelho, no espelho do banheiro.
Nesses dias modernos em que o tempo é escasso
Palavras se juntam, se fundem e fodem quem as tenta ler
Estuda-se tanto, para se comunicar por grunhido.
Minha visão do mundo tem 14 polegadas
Antena UHF, mono
Eu tenho medo de colocar o pé la fora
Observo tudo por uma janela empoirada, suja, fechada.
Tento, decididamente, decidir entre tanta falta de opção
Mas um medo terrivel do mundo mantém meus pés no chão
Essa fumaça preta me ataca os pulmões
Esses sapatos apressados vão trombar nos meus
E se eu não conseguir?
E se eu não te fizer gozar?
Se eu não souber soletrar?
Vou passar ridículo
Vou sujar meu nome
Vai entrar outro em meu lugar
De novo no final da fila
Porque hoje, os ponteiros do relógio
Trabalham com pilha alcalina
Minha TV se alimenta de energia nuclear.