domingo, 22 de agosto de 2010

Hoje de novo

Ela vai descer do ônibus no ponto de sempre
Vai andar um quarteirão até chegar em casa
Vai abrir o portão de modo silencioso
Deixar o tênis na porta da sala
Ela vai dar um beijo na testa da avó, que assiste TV na sala
Vai seguir o barulho de máquina de costura até achar a mãe num quarto mal iluminado
Dar um abraço por trás e ganhar um afago na nuca
Seguir até a cozinha, um prato em cima da panela espera por ela
Não, só o café, sozinha na mesa da cozinha
Café morno e olhar pro nada
Ela vai entrar no banheiro
Ligar o chuveiro
Despir-se
Vai sentir a água cair forte sobre a testa
Vai abaixar a cabeça
Vai chorar
Vai chorar copiosamente
Vai sufocar o grito
Ela sempre morre no final do dia.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Você, Chico, eu e Maria

Eu era um milhão de pedacinhos jogados pelo chão, eu era um desses quebra-cabeças baratos, de peças de papel, vagabundo e difícil de montar. Fiquei assim depois que você se foi, com a desculpa que acabou o amor, que era melhor assim. Enquanto eu tentava me montar, pensava no real motivo de nossa separação. Por estar com o pensamento em outro lugar e por ser difícil me recompor, me montar, várias vezes coloquei a perna no lugar do braço e o fígado no lugar do coração. O pior é que quando eu ia à padaria desse jeito, as crianças choravam e velhas evangélicas me repreendiam. Eu estava um lixo!
Certo domingo de sol eu estava sentado na praça com o pensamento longe, certamente pensava em você, quando alguém se sentou do meu lado, era um amigo, um colega, conhecido, alguém que você vê uma vez na vida na casa de alguém, outra vez na morte na casa de outrem. Claro que ele não trazia boas noticias, ele me disse que ficou sabendo por intermédio de uma ex-amiga da irmã de um conhecido, que você era vista por ai acompanhada de um tal de “Chico” e que era muito comum vê-los caminhando naquela mesma praça, sempre no final da tarde. Esse meu “amigo” disse que só havia me contado o fato, pois tem um grande apreço por mim e que todos comentavam o quanto eu estava mal com sua partida. Agradeci e decidi ficar ali pela praça, pois mesmo que eu quisesse muito ir embora, eu precisava muito ficar!
Eu sabia que não estava preparado pra te ver com outra pessoa, principalmente naquele dia, pois a combinação daquele vinho barato, o “Best of” do Cat Estevens e outro homem em teus braços poderiam ser letais! Porem, eu não tinha mais nada a perder e queria ver quem era o tal sujeito. Quando o sol estava indo embora eu os avistei ao longe, caminhando calmamente os dois, perna esquerda juntos, perna direita juntos, numa sintonia invejável. Eu já era o pior dos seres humanos naquela hora, queria que a terra me engolisse inteiro, sofrer autocombustão, ser atingido por um meteoro, sumir! Nada parecia ser pior do que aquilo. Quando, olhando mais atentamente me dei conta de que não se tratava de qualquer “Chico”, não era o Chico da padaria ou o barbeiro Chico, era um que tinha um violão, belos olhos verdes e que já tinha comido todo mundo daquela rua, se tratava de Chico Buarque de Hollanda! Segurei meus pedaços e corri pra casa, passei pela porta, fechei-a, desmontei de novo.
Embora não acredite muito nesse lance de signo, dizem que o escorpiano tem um poder sobrenatural de se reinventar, de ressurgir mais forte de tamanha catástrofe, me apeguei nisso enquanto colocava uma orelha no lugar do nariz. “Assim como não há bem que dure, não há mal que perdure”; ”o tempo é o senhor da razão!”; “o castigo vem a cavalo”; “ a vingança é um prato que deve ser servido frio”; “chicotim queimado é muito bom, quem olhar pra trás, leva um beliscão”. Eu já tinha planejado uma vingança e já tinha me remontado da maneira certa, faltando um baço ou um siso, nada que fosse fazer muita falta. E embora eu tenha que aturar um cunhado chato e ter que fingir ter dor de cabeça toda noite, nenhum dinheiro no mundo poderia pagar a cara que você fez quando me viu tomando um chopp com a Maria Bethânia na mesma praça onde te vi com o tal do “Chico” que, diga-se de passagem, já estava comendo por outras freguesias.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Ex-herói

Saudades de sair voando por ai atrás do teu doce preferido
De arrepiar os pelos do teu corpo com meu sopro gelado
De ver através do teu vestido com meu olhar de raio-x
Esquentar o café com minha visão a laser
Usar o super devaneio, enquanto você emendava assuntos infinitos.
Hoje sou recolhido junto com os copos vazios em mesas de bar
De tão despercebido que sou.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Bailarina

Noite da sábado, teatro cheio
Ternos engomados e belos vestidos
Lugares marcados
Engole logo essa pipoca, desliga o celular
Rápido, silêncio, vai começar!
Diminuem-se as luzes
Orquestra a tocar
Entra a bailarina
Linda, na ponta dos pés
Um giro pra cá, e agora, ao revés
Bailarina vem pulando
Bailarina vem gingando
Bailarina vem dançando
Bailarina vem balançando
E o público, bocejando...
Então, num erro primário...
Bailarina vem tropeçando
Bailarina vem cambaleando
Bailarina vem capotando
Bailarina vem derrubando, tudo que tem pela frente
E o público gargalhando...
Então depois de tantos "andos" e "desandos"
A pobre bailarina nunca mais calçou as sapatilhas.

Banalidade dos boçais

Fácilmente solúvel em agua turva
Bula de fácil entendimento
Leviano, fútil
Inconstante; inútil
Volúvel
Banal!
Contém conservante, acidulante,corante, emulsificante
Nenhum caráter...
Figurinhas carimbadas
Muda rótulo, muda marketing, nova campanha!
Mesmo falso e tolo produto de prateleira.
Milhares iguais...

Hobby

Algumas crianças colecionam pipas, figurinhas, bonecas.
Alguns velhos colecionam embalagens de remédio e chinelos.
Alguns homens colecionam camisas de times de futebol.
Algumas mulheres colecionam bolsas e sapatos.
Alguns meninos colecionam mentiras
E algumas meninas colecionam...meninos!

Felicidade é isso

Sai dessa rapaz!
Nada adianta ficar trancado em casa, janela fechada, dias iguais
Emburrado, maltratado e engordando
"A vida é uma roda gigante"
Já disse algum escroto, tolo e ignorante.
Abre a janela e a porta, deixa o sol entrar e o cachorro sair
Implicou também a ele a tua sina de solitário
E ele não via mais a hora de sumir, enterrar ossos por ai.
É hora de sair andando sem destino
Largar a terapia
Gastar solas de sapatos onde nunca se foi
Esquecer um pouco teus "ais"
Cantarolando jingles de candidatos estaduais

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Nasci ruim

Quando eu nasci, aquele tapa na bunda já me deu uma vontade enorme
de revidar.
Indaguei-me o porquê de outros bebês no berçário terem um lençol mais
bonitinho, com estampas legais, primeiro indicio de inveja.
Pulei a infância, a pré-adolescência e a adolescência, me concentrei na
"futil-ídade".
Já sei o que quero ser quando crescer... Anticristo! Anticristo de profissão.
Se bem que, me interessam alguns cargos públicos no Maranhão.
Caráter pra isso eu tenho, já que sou desprovido de qualquer indicio de um.

domingo, 8 de agosto de 2010

Sai dessa igreja menino...Vai pro bar!

Andamos reto sobre calçadas tortas
A cidade dorme o sono tranquilo do além -madrugada
Velhos e suas pantuflas
Programas de humor de conteúdo duvidoso piscam pelo lado de fora da janela
Um livro de auto-ajuda e chá
Casais separados numa cama king-size, frio.
Não pra nós...
O blues só é blues até chegarmos lá
Por vezes o blues é tão blues que fica roxo!
Só até chegar,só até chegar...
"Mesma hora no bar?"
Tudo o que é etilico fica pra segundo, terceiro plano
O que conta lá são os abraços e as risadas mais sinceras
E a saudade que fica do lado de fora por alguns instantes
O blues já não é tão blues, é algo assim...azul bebê!
E as filosofias de buteco
E o papo sério
E o olho no olho
E o riso, riso bom
Depois, andamos torto sobre calçadas retas!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Condomínio

O sol dá as caras ainda sonolento e um ônibus quase vazio vai se afastando do mundo real. Deixa pra trás casas juntinhas uma das outras, pessoas, portas de aço que ainda não se abriram. O ônibus continua e na demorada viajem, um pequeno cochilo e um pacote de biscoitos, quando a pequena se dá conta o visual lá fora é outro, estrada de chão, muito mato e arvores! Um cachorro magrinho dormindo atrás de uma cerca de arame não passa despercebido pelos olhinhos curiosos da menininha. De mãos dadas com a avó vai caminhando e o próprio ônibus agora, fica pra trás.
Falante a pequena! E toda a energia que lhe sobra em passinhos apressados, falta na avó, de andar curvado e lento, cansado. Passam por um muro alto e um portão imponente, mas já estiveram ali antes e o olhar sisudo do rapaz de boné e botas da lugar a um sorriso acolhedor ao ver um vestidinho rosa desbotado carregando uma boneca velha. A pequena dentro do vestido ganha um afago e prossegue, continua por ruas bem cuidadas, num lugar onde as casas não têm muros!
Enquanto a boneca e a menina descansam os pés descalços num sofá confortável, a senhora prepara um pão “com coisa boa dentro”. Depois de alimentada é hora de dormir um pouquinho, numa cama que pertence a uma princesa que a menininha só conhece por fotos e que não ficaria nada satisfeita em saber que um vestido meio amarrotado e velho descansava ali. Na hora do almoço conta casos e reluta em comer as verduras, mas come. E depois enquanto a casa vai ficando cheirosa e arrumada e menininha ainda corre pelo jardim. Tudo limpo, arrumado e o chão parece um espelho. Hora de ir.
Agarrada a sua boneca os passinhos agora são lentos, passinhos de quem parece não querer voltar pro mundo real. Passam pela rua em direção ao portão, as três em silencio: pequena, boneca e avó. Ganha um afago novamente e segue em direção ao ônibus. O sol se despede, o mundo segue normal, pessoas reais entram no ônibus, marmitas, ferramentas, olhares tristes e cansados. É escuro e frio, quando a menininha de boneca velha e vestido amarrotado volta pra casa, no mundo real.

Lá vem Tereza

Lá vem Tereza, num andar que sugere safadeza.
Seus cabelos negros e lisos contrariam a natureza.
La vem Tereza...
Quando a vejo vindo ao longe, escondo o cigarro e a cerveja
Ignora-me, passa reto, sempre assim.
De novo vem ela, pele preta, sorriso branco de giz, e naqueles quadris
Caberiam três de mim!
Quem sabe ela prefira um cafajeste?
Copo na mão, cigarro na boca, pose e topete.
Nada...
Ouso arriscar que Tereza é racista e por mais que eu tente
Que eu insista, minha pele desbotada e amarelada me condena.
Ai, meus sonhos de café com leite!
Ai, meus pesadelos de teus “não”
Tereza, eu sou Flamengo, só me falta você, um Fusca e um violão.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Cidade Grande

Nunca vou me habituar. Nem imaginei que seria tão difícil. Tenho quinze minutos pro meu café diário, e perco dez, só em tentar atravessar a rua até o boteco de frente pro prédio, nunca vi tanto carro! De onde eu venho posso deitar na rua e contar direitinho umas boas horas sem passar nenhum carro de boi. Quando consigo finalmente atravessar, na calçada, ainda levo uns três tropeços, uma cotovelada e um safanão até entrar no bar. Eta povinho apressado! Parece até que vai tirar o pai da forca! Falatório danado e o cara do lado de trás do balcão parece ter vindo lá de cima também, mas é mitido que só. Com essa cara queimada de sol se acha carioca, mas esse sotaque e essa cabeça me enganam não. Café ralo e pão fino eu peço, e o cabeçudo me alerta com um tapa no balcão que já ta pronto. Oxi, nem respira posso!
Engulo meu café e já volto correndo pro prédio. “Abre portão, fecha portão! Abre portão, fecha portão”. Troço chato! Me da uma enxada que eu me viro. Ter que ficar olhando esses sujeitos na câmera é que num dá. Nunca sei se os cabra tão indo ou vindo! Me atrapalho todo!Paraíba nasceu pra duas coisa: passa sede e ser porteiro!