quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Morreu jovem

Morreu jovem, pouco tinha visto da vida. Assassinada cruelmente e jogada numa esquina pouco movimentada. Morta em vão! Nada no mundo mudou após sua morte, nenhum casamento desfeito ou cargo ocupado. Nenhum amor conquistado ou carne liquidado. Morreu em vão. Nem teve a dignidade de alimentar a família na mesa de domingo. Nem, a bela sensação de esquentar a casca de sua prole, de vê-la saindo do ovinho com aquela carinha feia de quem come minhocas. Morreu sem nem ter escapado pra rua ou andado de caminhão. Como muita gente, morreu por culpa de religião. Não porque se opunha a alguma, mas, porque alguém inventou que santo come galinha com farofa e dendê no além!

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Fila de banco

A solidão atormentava esse ser de passos tortos. Sempre andei muito sem rumo e olhando pra baixo, sempre pra baixo! Olhar para baixo tem suas vantagens, evita pisar em dejetos caninos, tropeções e buracos. Porem, com minha desatenção e falta de sorte além de não evitar nada do que citei ainda me garantia cabeçadas em placas e trombadas. Uma vez, na fila do banco, olhava eu pra baixo e pensava na minha miserável vida. Pensava, pensava. Fila de banco é um ótimo lugar para praticar perguntas que não possuem respostas fáceis, exemplo: De onde eu vim? Pra onde eu vou? Qual o sentido da vida? Por que a fila de idosos demora mais do que a fila comum? Todo banco tem três tipos característicos de “caixa”: um velho reclamão, um sujeito novo, porém calvo e uma morena linda, por quê?
Eu me fazia as mesmas perguntas e quando eu vi que apenas um atendente era o responsável por gigantesca fila, fui além. Perguntei-me o porquê da minha solidão, o porquê de meu edredom de casal nunca ter sido antes desdobrado, só haver um chinelo em baixo da cama e apenas uma escova de dente no armário. Eu olhava fixamente para um ponto, e não via nada, estava num devaneio tão profundo que me desliguei de tudo, parecia que não estava ali, na fila do banco. Durou uns 2 minutos, esse meu devaneio, acordei de súbito! Com um arrepio na nuca e uma sensação estranha, quando meus olhos focaram de fato o local que miravam, eu a vi: morena, nem baixa nem alta, não muito gorda e não muito magra, nem bonita nem feia, porém linda a meus olhos, nota cinco! Ela me olhava com a mesma convicção que imaginou que eu olhava pra ela, no meu “transe”. Coincidentemente fixei os olhos nela e funcionou. Retribui seu sorriso e me apaixonei instantaneamente. Creio que o que mais me despertou interesse nela foi o fato dela se interessar por mim. Depois de pagar seus boletos ela ainda se virou pra mim, sorriu novamente e se foi. Minha covardia me proibiu de sair da fila e ir atrás dela, lamentei profundamente.
Depois disso, sempre voltei naquele banco atrás dela. Eu era uma espécie de “Office boy” da família, me oferecia pra pagar todo tipo de contas. Tornei-me cliente do banco, fiz seguro, poupança e titulo de capitalização. Fiquei amigo dos seguranças e às vezes ficava após ter resolvido algo, de papo com eles, na esperança de que ela aparecesse de novo. Nada! Alguns meses depois, voltei no banco com minha fatura sempre atrasada de TV a cabo, o atraso me permitia pagar “exclusivamente na agencia bancaria”. Fui com certa esperança de que a encontraria lá. Logo na entrada pude reparar que a fila era quilométrica e que minhas chances eram boas. Não a vi, perdi as esperanças e segurei as lagrimas como quem faz um esforço tremendo para carregar fardo pesado e de fácil quebra. Olhei pro chão, e então pro teto, respirei fundo e fui longe de novo, olhei fixamente pra lugar nenhum e meu devaneio, dessa vez algo triste assim, como uma bolinha de sabão, vazio, me dominou. Fiquei assim durante um tempo, quando uma voz as minhas costas me despertou: “O amigo! Olha a fila!” Voltei do transe num espanto e meus olhos viram então, um sujeito, de uns cinqüenta anos, bigode, cabelo estilo militar, nem bonito, nem feio, nem alto, nem baixo, não muito magro e tampouco gordo, ele sorriu pra mim.

Aconteceu num bar

Era um bar, mas também era lanchonete, sorveteria, restaurante e mercadinho. Tudo no seu devido horário é claro. De manhã, trabalhadores podiam tomar seu pingado junto de pão na manteiga enquanto assistiam o noticiário matinal na TV de 14 polegadas. Podiam também almoçar nos fundos do “bar”, onde era servida comida caseira de qualidade. A tarde era vez de a criançada consumir sorvetes e guloseimas, e a noite o clima de boteco era assumido, com grandes discussões filosóficas, futebolísticas e não raro, a novela das oito entrava em pauta. O dono do bar era um senhor simpático e bem-humorado, ele dividia seu tempo no balcão e nos fundos, onde era sua casa, apressando sua senhora sempre atarefada entre grandes panelas e salgadinhos.
E foi num domingo, quando o movimento no bar era pouco (na verdade não havia ninguém além de seu dono) que ele apareceu. Um rapazinho tímido, poucas vezes visto naquela pacata vizinhança apareceu. Ele vestia uma roupa obviamente escolhida pela mãe: camisa social, uma calça jeans super moderna com alguns apetrechos e mais uns zíperes opcionais e um sapato engraxado ao extremo. Eram exatamente 14h37min quando ele apareceu e ficou parado na porta do bar, como quem tem de ser convidado a entrar. E de fato, após algum tempo ali, parado, o dono do bar gentilmente pediu para que ele entrasse. Entrou cumprimento o sujeito baixinho atrás do balcão e sentou-se reto na cadeira. Pediu uma coca. O rapazinho ficou por algum tempo bebendo de maneira econômica sua coca e olhando para a TV, porém parecia inquieto e com o pensamento muito longe dali. A reprise de algum jogo do campeonato europeu passava naquela hora e um pouco incomodado com aquele silencio todo o homem atrás do balcão puxou assunto com o rapaz, este, aliviado se mostrou mais falante do que parecia. Conversaram então sobre futebol, filmes, musica da moda e novela das sete (que era a preferida do rapaz).
Depois de retornar ao silencio, que durou mais algum tempo o jovem revelou que tinha um encontro naquela tarde, que estava nervoso, que suas mãos suavam, além de sentir certa agonia boa no peito. O experiente dono do bar ficou feliz pelo rapaz e olhou contente para o belo dia que fazia lá fora, como se a situação completasse a beleza sutil daquela tarde de domingo. Logo depois ficou receoso com o horário, pois já passavam das 15hs. Então zapeando pelos canais da TV acharam um filme com grandes explosões e lutas, o que manteve suas atenções presas por algum tempo. Depois (em torno de 15h25min) o experiente senhor temeu por seu novo e simpático companheiro: “Será que ela vem mesmo?” se perguntou. Sentiu-se envergonhado e achou melhor não perguntar ao rapazinho, mas nessa hora estava visivelmente ansioso, assim como o jovem.
Enquanto o jovem bebia em goles homeopáticos a sua segunda bebida (dessa vez guaraná), o senhor foi até a porta, olhou em torno da praça, apenas algumas crianças jogavam bola e um bêbado dormia com a cabeça jogada pra trás num banco. Ficou com o coração pequeno então e voltou com passos ainda menores para trás do balcão. Evitou olhar para o rapaz e encarou severamente a televisão. Balançava as pernas de cima de seu banco de madeira e roia as unhas, nessa hora o jovem tinha a cabeça baixa e brincava com as marcas molhadas em cima de sua mesa. Aquilo foi demais para o coração do velho, que decidiu por fazer algo que abominava e que era impensável de ser feito num domingo, fazer algo que como ele mesmo definia: “era contra sua religião”. Muniu-se de vassoura, escovão e sabão e decidiu lavar o banheiro! Era impossível para ele acompanhar a agonia daquele menino, que provavelmente ficaria ali, a tarde toda, sem que aparecesse ninguém. Foi em direção ao banheiro com lágrimas nos olhos e sofria pelos dois naquela hora. Passou pelo rapaz sem dizer nada e se encaminhou para aquela tarefa árdua, porem, melhor do que acompanhar o sofrimento do novo amigo.
Quando estava na porta do banheiro, apareceu sobre a soleira da porta da frente, tinha cabelos à altura dos ombros, era castanho escuro e com cachinhos. Olhos cor de mel e um rosto que parecia ter sido esculpido a mão por talentoso artesão. Tinha um sorriso encantador, usava aparelhos e um vestidinho azul com borboletas brancas, linda! Era linda e sorria para o rapaz. Enfim, havia chegado. Eram exatamente 16hs e ela não chegou nem um minuto antes e nem depois do combinado, eram 16hs em ponto.
O dono do bar sorriu aliviado, aliviado por ambos! Largou esfregão, sabão e vassoura, desligou a TV, ligou o rádio na estação mais romântica da tarde e sentou-se na parte de fora do bar, a fim de dar alguma privacidade ao casal. Olhou para o sol, encarou o bêbado e o cumprimentou. Sorriu feliz então. As “mãos suadas” e a “agonia boa” fizeram o rapaz sair muito mais cedo de casa.