Diante de uma TV de quatorze polegadas e um monitor de câmeras, sonhava Ariovaldo. Um jornal de ontem, um rádio de pilhas, sapatos engraxados, gravata e camisa azul. Entre a porta do elevador e a porta da rua, sonhava Ariovaldo. Sonhava o dia em que deixaria a portaria, sem olhar pra trás, sem abrir portão, sem encerar o chão. Poderia viver de sua grande paixão: “sanfonar”. Pois nas sextas, o simpático e solícito porteiro, transformava-se num exímio sanfoneiro. Nas sextas à noite, Ariovaldo era a sensação de um forro no subúrbio da cidade. Sua musica quente transformava o ambiente numa versão compacta de Sodoma e Gomorra, tamanha esfregação na pista. Nas sextas de Ariovaldo, os motéis baratos enchiam e os vidros dos carros embaçavam. Foi acusado de ser o responsável pelo aumento de crianças no bairro em que morava, o efeito “baby boom Ariovaldo”. Eram tantos os pequenos que faltava nome. Discussões surgiam e ganhava quem registrava primeiro o rebento. Variações de “Wesley”, “Wesleyson”, “Wesleiano”, “Wescley” e tantos outros, pipocaram.
Rosa, sua esposa, mal podia assistir as apresentações do marido,
alternava seu tempo entre faxinas diárias e um supletivo de noite. Nas
sextas, ela preparava suco de jabuticabas, vestia sua melhor camisola e
esperava pelo marido até altas horas. Este, cansado, ao chegar em casa, tomava banho, o suco e Rosa, tudo numa
golada só. Conversavam um pouquinho e dormiam entre cafunés e entrelaçar de
pés. O bispo se despedia na TV. Eram felizes.
A fama do marido se
espalhava e os bailes enchiam de gente. Até o suco sobrar na jarra e a janta
esfriar, a camisola voltou a dormir no armário. Rosa, já não esperava mais pelo
sanfoneiro, que chegava cada vez mais tarde em casa. “Ontem foi um sufoco, o
pessoal não me deixava sair!” – justificava.
Na falta das justificativas,
passou a evitar os olhos da mulher nos sábados pela manhã. O que se ouvia pelo
bairro, era o boato de que o sanfoneiro tinha um caso com Lúcia, outros diziam
ser Lídia. “Vi ele com Lili, ou seria Lívia?”- afirmava Lurdes, mulher do dono
do forró. O boato corria de boca em boca, entrava e saia de vielas, velocidade incrível.
O boato corria, ultrapassava sinais. Subiu escadas, desceu, tocou campainha,
saiu de uma boca má e entrou direto pelos ouvidos de Rosa, devastou-a.
Numa dessas sextas- que na
verdade já era sábado, flertando com o domingo- Ariovaldo chegou em casa as
cinco da manhã. O hábito lhe havia fornecido habilidade de um gato, de um
ladrão, desses de Hollywood. Forçou e empurrou a maçaneta até ouvir o “click”,
entrou em passos leves. A luz do poste transformava a figura de sua cabeça,
projetada na parede da sala, numa figura hedionda. Foi em passos leves até o
banheiro, onde batom barato e perfume desceram pelo ralo. A canastrice, nenhum
desinfetante ou alvejante amenizaria. Olhou os próprios dentes no espelho,
constatou o inicio de uma calvície ao pentear os cabelos pra trás.
Ao entrar no quarto, a cama
arrumada lhe causou um choque. Olhou por exatos três minutos, a cena. Que dia
era aquele? Que horas seriam? Onde estaria Rosa? Culpou o relógio, a falta de
lógica do mundo naquele minuto. Ajoelhou-se e apoiou as mãos na ultima gaveta
da cômoda. Procurando por alguma razão, se sentiu
tentado a olhar dentro das gavetas ou embaixo da cama, a procura da mulher.
Tremeu os lábios e chamou
seu nome baixo: “-Rosa?”. Ninguém respondeu, só ouvia a própria respiração.
Abriu o armário e se deu conta de que muitas coisas, além de Rosa, não estavam
ali. Tateou em busca da camisola, tampouco ela. Sentiu-se então, naquela hora,
o mais miserável de todos os homens. Deitou-se na cama, fechou-se como um
caracol, usava sapatos...
(continua)