terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Pedro e Marcelo



Por detrás daqueles óculos fundo de garrafa estava Pedro, magro e portador de todo tipo de alergia que poderia caber no corpo de uma criança de 11 anos. Embora muito querido no bairro onde morava, desfrutava de pouca popularidade dentre os de sua faixa etária e era comum ver o pequeno Pedro perambulando sozinho, sempre carregando um carrinho ou um gibi nas mãos. Seu passatempo era sentar abaixo da sombra de uma jabuticabeira e ler os contos de seus heróis preferidos, essa árvore, por ser de fronte ao campinho, também lhe proporcionava bons momentos de risadas ao observar os jogos da molecada.
O “dono” do campinho era Marcelo, lá era sua morada, pois este nunca parava em casa. Marcelo tinha a mesma idade de Pedro, porém as similaridades paravam por ai: era odiado no bairro, garoto problema, vivia aprontando e de dez palavras ditas, sete eram palavrões. Era reconhecido ao longe, pois um short vermelho e uma camiseta surrada eram sempre suas vestimentas. Marcelo morava com a avó, sua mãe morreu antes mesmo de lhe dar um colo bom em fim de tarde e seu pai, esse ele nem conheceu.
Aquele menino sentado lá ao longe, debaixo da árvore sempre causou certo desconforto em Marcelo, que um dia, movido pela curiosidade, resolveu ir até lá. Subiu calmamente o caminho de pedras até a jabuticabeira e assobiava tranquilamente. O garoto sentado com um gibi nas mãos congelou e então Marcelo sentou-se ao seu lado, indagou o que era aquilo que ele lia e fez também um longo interrogatório com Pedro, que suava frio. No fim das contas, Marcelo, que tinha ido até lá para maltratar o pequeno estranho, sentiu pena do guri e resolveu “adotá-lo”. Desceram juntos o caminho de pedras em direção ao campinho e passaram no meio do campo, onde sem nenhum tipo de protesto o jogo parou e os jogadores observaram a estranha cena. O que fazia Marcelo ao lado daquele menino tão estranho? A bola continuou a rolar, mesmo que nem todos os participantes da partida estivessem de fato nela, a curiosidade ainda era maior do que qualquer toque de letra ou gol de bicicleta. Pedro parecia não acreditar naquilo e manteve-se cabisbaixo todo o momento. Sentaram-se no gramado (que só existia nas extremidades do campo) e conversaram até que o jogo acabasse, conversaram até a hora em que o dono da bola precisou ir fazer o dever de casa, conversaram até que a mãe de Pedro apareceu com ar desesperado à procura do filho, que nunca chegava em casa após as 19hs e já eram 19:15hs!
Nasceu então uma amizade sólida, que causou grande confusão e intrigas entre as beatas do bairro e o dono do armazém (várias vezes furtado em guloseimas por Marcelo).
Era comum ver Pedro e Marcelo embaixo da jabuticabeira, comum ouvir suas gargalhadas a metros de distancia. Marcelo tentou sem sucesso ensinar ao novo amigo a soltar pipa e a jogar bola, Pedro tentou também, sem sucesso, introduzir o amigo ao mundo da leitura. Divertiam-se com as histórias um do outro e embora Pedro nunca tivesse vivido de modo aventureiro, Marcelo ria de doer a barriga ao ouvir sobre o dia em que o pequeno havia ficado trancado no banheiro da escola, ou quando o magricela pegou por duas vezes seguidas o ônibus errado. Incapaz de fazer um elogio, talvez, por nunca ter recebido um, Marcelo terminava suas colocações sobre o amigo com um tradicional: “É muito viado mesmo!”.

(continua)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O dia em que Zé parou


Parou, Zé parou
No meio da calçada
Olhou pro longe
Pensou em voltar para o lugar nenhum
Ou continuar pra nenhum lugar.
Magro, sem documento, sem nome
"Zé" apenas
"Zé" para não ser chamado de "coisa" ou "treco"
"Zé", embora ninguém pronunciasse seu nome.
Deitou-se no meio do passeio público
Esticou-se devagar
Abriu os braços e tentou encarar o sol
Como se o desafiasse
Como se o chamasse para um duelo
Às duas da tarde.
O sol não teria muito problema ou dificuldade
Em torrar a pouca carne de Zé
De evaporar o pouco de líquido e alma presente no mirrado corpo
E assim o fez...
Não se sabe, se Zé morreu de desidratação
Ou morreu antes, de desgosto, por vontade própria.
Esticado...
No meio do passeio público
Olhos fundos, seu corpo parecia uma folha seca, contorcido
Dedos ristes, boca aberta
Nada que fizesse o mundo parar
Ou o trânsito, sapatos e cachorros.
Ninguém se deu conta de que ele estava meio da calçada
Passos apressados passavam por seu corpo inerte
Pequenos passos em pequeninas pernas
Pé direito por cima do corpo de Zé
Pe esquerdo por cima da magreza de Zé
E até uma criança havia passado por ali.
Quando noite, foi empilhado junto ao lixo das lojas
Levado pelo caminhão
Jogado no aterro sanitário.
No outro dia, em sua volta foram catadas todas as latinhas
Restos de papel e papelão
Ele, continuou lá
Evaporando aos poucos
Sumindo, sumindo...
Até que sumiu por completo
E sua alma inexistente contemplou finalmente o nada.