quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cicatriz

Quando só existia a televisão da sala
Num tempo em que só se buzinava por cordialidade
Antes de me maravilhar ao assistir o funcionamento de uma torradeira
Antes disso tudo
Eu ja era uma folha no chão
Uma das primeiras a me desgarrar ou, ser jogada da árvore
Muito,muito antes do inverno
Fui carregado de um ponto ao outro
Varrido, guardado dentro de um livro
Eu assiti com um aperto no peito e um grito mudo
O fim de todos os cataventos
Dos apertos de mãos e abraços
Gastei por avenidas e ruas estreitas, todos os meus sapatos
Andando dentro e fora de mim
Em lugares que ainda tenho medo de ir
Bebi litros de Merthiolate e Mercúrio cromo
Procurando sarar, amenizar uma dor meio teimosa
Uma vez a vida em sua cretinice vulgar, cismou em me lavar a alma
Fui lavado, centrifugado, batido e torcido por grande máquina de dentes afiados
Ja berrei e fui censurado pela ditadura de papai e mamãe
Fui torturado e massacrado por crianças maiores que eu
Nunca obtive êxito em qualquer tipo de jogo
Guardo todos os meus amigos do tempo da escola
Ainda guardo, num antigo gravador dum canto empoeirado da memória
A voz de todos eles, seus risos, algum choro
Hoje, não me vejo nos olhos da maioria deles
Eu, sou uma coisa magra, fraca, "esmirrada" e triste
Debaixo desse monte de cicatrizes

Boca

A boca é Bela
Desenhada
A voz é doce
Mansa
A palavra é pedra
Dura
Palavra Corte
Sangue
Palavra corda no pescoço
Osso
A boca é vermelha
A tua mentira
Teia
Centelha
Fogueira
Palavra louca
Palavra dura
Palavra morte
Palavra falta de sorte
Palavra...
Qualquer palavra...
Toda...
Toda palavra
Que sai de tua boca.

Roland Emmerich

Se reuniram, se reuniram como velhas desocupadas em dia de domingo, porém, o motivo pelo qual as forças da natureza se juntaram em assembléia era muito mais maligno: destruir -de novo- a raça humana.
No dia e hora marcados o ataque foi mortal, o vento soprou como nunca antes, desarrumou cabelos, levou perucas, levou também a cabeça de seus donos. Casas foram jogadas ao ar como casinhas de papel frente ao ventilador. A terra se abriu engolindo acampamentos hippies e castelos da "high society". O mar avançou com toda a sua fúria numa onda gigante, destruindo o pouco do que havia sobrado da presença do homem na terra. Numa irônia mordaz e cruel a única casa que ficou em pé, o único sobrevivente após a grande tragédia, chamava-se Roland Emmerich.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Morto

Um homem morto anda por ai, eu vi
Com olhos cansados, fundos e negros
Mãos brancas, tremulantes, cheias de manchas e pequenas veias
Um homem morto anda por ai, seu corpo leve ainda não foi levado
Uma brisa fria atravessa a rua, ele passa despercebido
Nem Deus sabe de sua existência e nem o Diabo conhece seu paradeiro
Um homem morto anda por ai, eu vi!
Escolhe frutas na feira
Inveja o sorriso da criança
E nem todo o açucar do mundo cura essa amargura
Sem porta-retrato, sem foto 3x4
Nem riso ou choro, nem velho, nem moço
Homem, vulgarmente conhecido como "cadáver"
Anda por ai, eu vi
Eu vi um homem morto por ai
Vi, me encarou severamente
De sua boca nem uma fria palavra
Seus pensamentos me congelaram a alma
Vi um homem morto, me encarou desapontado no espelho.